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MP da regularização de terras repete processo de pilhagem do patrimônio público

Medida provisória enfraquece a fiscalização em novas fronteiras da grilagem

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Almir Teubl Sanches Julio José Araujo Junior

A história da concentração latifundiária no Brasil é a história da condescendência do poder público com a grilagem de terras públicas por elites locais. Nos próximos dias, com a iminência da votação da medida provisória 910, a sociedade corre o risco de ver se repetir o que parece uma história amaldiçoada de séculos.

Para evitar isso, deve decidir-se por prestigiar o interesse coletivo (tais como patrimônio público, equilíbrio ambiental e direitos de povos tradicionais) em detrimento de interesses de elites locais que apostam contra as leis, esperando sua complacência.

A pretexto de promover a regularização fundiária, a MP 910 aumenta a deterioração do regime jurídico de terras e enfraquece a capacidade de fiscalização na defesa do patrimônio público, especialmente em novas fronteiras do processo de grilagem, como a Amazônia Legal. Curioso é notar como diversos dos dispositivos da medida trazem exatamente os mesmos vícios (cuidadosamente selecionados) que permitiram, durante séculos, transformar grilagem em propriedade, com o toque mágico de uma caneta.

Os grandes latifúndios no Brasil não são tanto frutos do sistema de sesmarias da época colonial, pois, naquela época, todas as terras pertenciam à Coroa e, principalmente, não tinham valor comercial. As terras passariam a ter valor na segunda metade do período imperial (com marco na Lei de Terras, de 1850) e, principalmente, no início do período republicano.

E é justamente nesse período que os poderes públicos locais chancelam as grilagens realizadas pelas elites, muitas vezes coincidindo as figuras dos invasores e dos legisladores. Em paralelo, a negação da presença de povos indígenas naquelas localidades, por exemplo, não foi uma mera coincidência.

A República Velha foi talvez o período de maior apropriação ilegal de terras públicas. Um dos grandes embates da Constituinte de 1891 foi a questão da propriedade sobre as terras devolutas (terras públicas, determinadas por exclusão às terras privadas), se deveriam ser da União ou dos estados.

Venceu a última tese, uma vitória das elites agrárias estaduais. Com isso, durante toda a República Velha assistiu-se a apropriação das terras públicas por tais elites. E o principal instrumento para isso foi a sucessão de leis estaduais, que periodicamente revalidavam ocupações ilegais. Tornou-se então um ciclo pernicioso: as elites agrárias ocupavam ilegalmente terras públicas, que seriam posteriormente legalizadas pelo governo local, a pretexto de pacificar uma situação de fato já estabelecida e com a promessa (nunca cumprida) de que aquela lei seria fatal e não haveria novas regularizações. Posteriormente, tais elites voltavam a apostar contra a lei e eram novamente premiadas.

Para possibilitar tal apropriação do patrimônio público, alguns vícios sempre se repetiam. Além da renovação periódica de datas-limite para as ocupações regularizadas, somavam-se a suficiência da autodeclaração e a ausência de fiscalização das ocupações. Todos esses defeitos podem ser encontrados na MP 910 e nos projetos que, sob o pretexto de atenuá-la, não mudam efetivamente o rumo das coisas.

Por exemplo, a medida faz com que a mera informação no Cadastro Ambiental Rural (CAR) valha como forma de regularização fundiária (artigo 13, inciso II), deixando de lado a necessidade da adequada conferência das informações pelos órgãos oficiais, já que muitos imóveis estão sobrepostos a terras indígenas e unidades de conservação ambiental.

Além disso, ao alargar a dispensa de vistoria prévia a imóveis de até 15 módulos fiscais (artigo 13, caput), e não mais 4 módulos fiscais, a MP 910 possibilita que grandes extensões de terras públicas possam ser atribuídas a particulares sem qualquer vistoria.

O número de hectares que perfaz um módulo fiscal, de acordo com o município, pode chegar a 90. Ou seja, 15 módulos fiscais podem ser do tamanho de até 1.350 campos de futebol. Em parecer na Câmara, parlamentares acenam com a diminuição do tamanho da área para seis módulos, o que diminui o impacto, porém não afasta a tônica de abrir as portas legais para a convalidação das situações irregulares, a ser atualizada rotineiramente. Abrir mão a priori da vistoria já foi, anteriormente, considerada prática inconstitucional pelo STF (Supremo Tribunal Federal), na ADI 4269.

Por fim, a MP 910 repete a velha prática de novas datas-limite, renovando o prazo para a regularização, que se tornaria possível sobre ocupações ocorridas até 5 de maio de 2014. Há proposta no Legislativo que também ensaia um recuo quanto a isso, porém com uma surpresa: mantém-se o marco atual de regularização (julho de 2008), porém tenta-se autorizar, por outro lado, que áreas ocupadas irregularmente até 2016 possam ser compradas pelo governo federal, o que representaria uma vitória de Pirro e mais um prêmio à grilagem.

A medida aprofunda a lógica perversa da apropriação, com o agravante de que as novas fronteiras de ocupação ilegal são normalmente áreas ambientalmente protegidas, territórios tradicionais ou terras que deveriam ser destinadas à reforma agrária, enquanto a MP incentiva o desmatamento e a expulsão de povos tradicionais, por quem sabe que vale a pena apostar contra a lei.

Prova de que tal lógica compensa foi constatada pelo TCU (Tribunal de Contas da União), ao concluir que órgãos do governo federal não adotaram medidas para reaver áreas que estão ocupadas irregularmente desde a edição da lei nº 11.952, totalizando uma renúncia de receita no valor de R$ 1 bilhão. A corte detectou também que 95% das áreas analisadas não cumprem as cláusulas às quais os ocupantes se obrigaram como contrapartida pelo acesso à terra, como a manutenção da destinação agrária, o respeito à legislação ambiental e o pagamento de parcelas ao Estado.

Em síntese, a MP 910 busca reproduzir um processo de pilhagem do patrimônio público que se repete há séculos. A concentração fundiária no Brasil (e todas as mazelas a ela associadas) não é fruto do acaso. Foram escolhas políticas tomadas por pessoas que, em momentos históricos, sobrepuseram seus próprios interesses ao interesse público. Esse ciclo de injustiças precisa ser quebrado.

Almir Teubl Sanches

Procurador da República lotado na Força-Tarefa da Lava Jato do Rio de Janeiro desde 2017, mestre e doutor em teoria geral e filosofia do direito pela USP e especialista em direito público pela ESMPU

Julio José Araujo Junior

Procurador da República, coordenador do GT Reforma Agrária (PFDC/MPF) e mestre em direito público pela UERJ. É autor de “Direitos Territoriais Indígenas: Uma Interpretação Intercultural”

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