Descrição de chapéu Saiu no NP

1968: Prisão de garçom na Boca do Lixo transforma cadeia em duelo artístico

Funcionário público toca clarinete no xadrez e abre disputa de poesias e acrobacia

Luiz Carlos Ferreira
São Paulo

Em 10 de novembro de 1968, durante uma ronda noturna no 3° Distrito Policial dos Campos Elíseos (região central de São Paulo), repórteres do Notícias Populares apuraram um caso atípico envolvendo a prisão em flagrante de um garçom, que foi pego embriagado enquanto tocava clarinete numa rua do centro.

O preso era Antônio Pires dos Santos, de 53 anos, funcionário do Tribunal de Contas do Município de São Paulo.

Natural de Bariri, cidade interiorana a pouco mais de 300 km de São Paulo, ele estava havia 31 anos na capital.

Garçom artista dá show na delegacia após ser detido tocando clarinete na Boca do Lixo, no centro de São Paulo
Garçom artista dá show na delegacia após ser detido tocando clarinete na Boca do Lixo, no centro de São Paulo - Folhapress

Aficionado por música, Antônio já tinha integrado várias bandas no interior do estado. Um ano antes, em 1967, foi convidado para tocar no carnaval de sua cidade, onde conseguiu uns trocados como músico freelancer.

Na noite de 10 de novembro de 1968, porém —um domingo—, Antônio bebeu um pouco além do habitual. Com o clarinete na mão, rumou para a Boca do Lixo, região no centro da capital conhecida como o principal reduto de criminosos e prostitutas entre as décadas de 1950 e 1980.

Na confluência das ruas Vitória e General Couto de Magalhães, enquanto Antônio tocava o seu instrumento, um investigador aproximou-se para interrogá-lo.

Numa manifestação de apreço pelo talento do garçom, o interlocutor disse que ele podia tocar a noite toda e que, caso algum patrulhamento tentasse prendê-lo ou impedi-lo de produzir a música, ele [o investigador] "aguentaria a mão”.

No entanto não demorou muito até que uma viatura da polícia encostasse para dar reforço. Com a chegada dos agentes, o investigador, que antes havia garantido a liberdade do garçom de tocar na rua, num gesto rasteiro sugeriu aos policiais que levassem Antônio “em cana”. A reportagem do NP não revelou o motivo da prisão.

Até os anos 1980, quem estivesse na rua embriagado, desempregado ou sem documentos, podia ser enquadrado no artigo 59 do decreto-lei 3.688 da Lei de Contravenções Penais, chamado de “Lei da Vadiagem”, instituída em 1941, na ditadura do Estado Novo, no primeiro governo de Getúlio Vargas (1937-1945).

Durante o depoimento na delegacia, Antônio declarou que não se importava de estar preso. Mas fez uma única exigência: que não lhe tirassem o clarinete.

Na cela, em meio a suspeitos, criminosos e meretrizes, para espantar a angústia do cárcere, Antônio improvisou uma apresentação, provocando o aplauso principalmente das mulheres, que pediam novos números ao final de cada música executada.

Mais tarde, um homem embriagado que acabara de ser detido e colocado no mesmo "xadrez" do garçom, começou a declamar poemas, como quem quisesse disputar a atenção dada ao clarinetista. Antônio, que não quis ser ofuscado pelo "rival", também passou a recitar versos, sendo reverenciado com mais aplausos do que o adversário.

Surpreso com o revide do garçom e sentindo o declínio de sua popularidade entre os presos, o "algoz" deu início à uma série de saltos acrobáticos com grande maestria. O que ele não esperava é que Antônio, apesar dos seus 53 anos de vida, também era habilidoso nos saltos.

E assim, há 50 anos, foi o plantão do 3º Distrito Policial dos Campos Elíseos, com uma madrugada um tanto incomum não só para os presos, mas também para os policiais, que acabaram se divertindo até as primeiras horas da manhã com muita música, versos e acrobatismo.

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