Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
16/12/2010 - 08h25

O destempero da Elaine

LUCAS MENDES
COLUNISTA DA BBC BRASIL, EM NOVA YORK

Woddy Allen, filmou no Elaine's. Joseph Heller, Mario Puzo, George Plimpton, Gay Talese, Peter Maas, Tom Wolfe e dezenas de outros escritores novaiorquinos têm as capas de seus livros emolduradas nas paredes do restaurante.

Billy Joel cantou o Elaine's. Mick Jagger entrou e silenciou o ambiente. Pavarotti foi ovacionado de pé. Willie Nelson beijou todas mulheres no bar. Nureyev e Baryshnikov dançaram com uma cadeira.

Eu fui preso no Elaine's. A Elaine também.

Eu não era um diarista, mas era vizinho de rua, na 88, a dois quarteirões do restaurante, que não era caro, servia porções enormes e medíocres, mas era uma farra, efervescente, diferente, democrático.

Semi-democrático. Tinha uma "Sibéria" e a Elaine estava mais para czarina do que para rainha Elizabeth.

Estes nomes que citei e a turma da chamada lista A ficavam nas mesas "da linha" (the line tables) que começavam logo na entrada, à direita do restaurante, e terminavam num salão mais amplo. Havia uma outra sala para a lista C, dos ilustres desconhecidos, conhecida como "Sibéria".

O segredo de Elaine, que abriu um restaurante com US$ 10 mil numa vizinhança desvalorizada na década de 60 conhecida como Yorkville ou Little Germany, hoje Upper East Side, foi vender fiado para uma clientela de escritores e jornalistas. Bem sucedido, atraiu estrelas do beisebol, políticos e mulheres bonitas.

Minha conexão com Elaine's não foi só de vizinhança. Fiz uma entrevista com ela e um perfil para a revista Manchete e era sempre bem tratado, sem acesso às mesas da linha, onde ficavam Woody Allen, os prefeitos e chefes de polícia, também "habitués".

Da minha posição podia-se ver várias celebridades, mas era proibido arregalar os olhos, esticar o pescoço, deslumbrar ou tietar. Tirar fotos ou pedir autógrafos, nem pensar. Nem japonês.

Todos lá eram iguais e normais.

Um amigo, Steve Dunleavy, australiano, jornalista e colunista do "New York Post" tinha liberdade de movimentos. Ninguém segurava o Steve, um dos porristas mais loucos da tribo do jornalismo novaiorquino durante quase cinco décadas.

Numa nevada pesada ele saiu do restaurante com uma grã-fina e estava no meio dos procedimentos quando um caminhão de lixo passou em cima e quebrou o pé dele.

A notícia correu rápida pelo restaurante. Pete Hamil, escritor, ex-namorado de Jackie Kennedy, também freguês diário do Elaine's e editor do tabloide rival, "Daily News", fez um comentário que ficou mais famoso do que o acidente: "Espero que tenha sido o pé que ele usa para escrever."
Em inglês a maldade fica melhor: "I hope it was his writing foot".

Durante uma briga furiosa, Norman Mailer e o adversário quebraram a parede e entraram pela cozinha. Mais uma pequena história da ótima medida sobre a fama e as efemérides do restaurante.

Quando um noviço perguntou onde ficava o banheiro, Elaine respondeu: "Depois do Michal Caine, vire à direita".

Naquela época as pessoas ainda usavam cheques para pagar conta, como ainda se faz no Brasil (mas aqui nunca existiu "pré-datado" nem o "especial") e sempre paguei as contas do Elaine's com cheque.

Uma noite levei um amigo que gostava de literatura e conhecia vários daqueles escritores. O Woody Allen estava visível lá na "linha" com a Margaux Hemmingway que tinha acabado de filmar com ele. O amigo estava mais fascinado pelos encantos e pela paternidade da moça do que pelo cineasta.

Pedi a conta, fiz o cheque e o garçom voltou com ele. A Elaine hoje só aceita dinheiro ou cartão. Indignado e num surto de cidadania, disse que não. Ele voltou e me avisou que ela estava tiririca naquela noite e era melhor não provocar. "Negativo. Só cheque".

Dez minutos depois voltou com dois policiais. Vai pagar?

Meu pobre amigo, perplexo e assustado, oferecia dinheiro.

"Eu também tenho dinheiro e cartão. Mas é por princípio! Vai algemar?"

"Não vai ser necessário", respondeu o policial.

Com meu amigo suplicando pela janela lá fui eu para o distrito no banco de trás. A dupla conhecia bem a dona Elaine Kaufman. Deles ela não cobrava e as colunas sociais contavam sobre as boas relações que tinha com a polícia. Não era para menos. Quase todos chefes foram "habitués".

O sargento na delegacia ouviu meu caso e disse que o juiz provavelmente iria concordar comigo porque não se pode rejeitar cheque sem motivo, mas o cumprimento da lei tinha suas variações.

Este não era o problema maior. Era uma noite de sexta-feira e o sargento me explicou que eu ia ser levado para a central para ser indiciado e passaria pelo menos três noites com suspeitos numa cela lotada. Talvez visse o juiz na segunda, ou só na terça.

Podia me dar uma boa história e minha cidadania ainda estava de pé. O problema maior era a gravidez de minha mulher que podia parir a qualquer momento. Se eu ligasse para dizer que estava preso e só voltaria daí a três ou quatro dias, ela podia realmente ter o filho.

Os dois policiais policiais me levaram de volta ao restaurante. Um deles pegou meu cartão de crédito, passou na máquina e trouxe para minha assinatura e liberdade.

Fiquei muitos anos sem voltar ao restaurante, mas um dia passei na porta com meu amigo Lulu, um fotógrafo adorável. Ele insistiu em ter um drinque no bar. Comida não era o forte dele.
Atrás de nós, com três mulheres altas e lindas estava nosso maior playboy, Jorginho Guinle.

Batia no ombro delas mas era um gigante em simpatia e boas maneiras.

No banco alto, meu amigo começou a fazer uma gangorra, equilibrado nas duas pernas de trás até que ... tchibum! lá foi ele se esborrachar, sem largar o copo, bem no meio do quarteto.
Levantou, um passo prá cá, dois prá lá, saiu escorado em mim, mas bem na frente do restaurante, diante do janelão, abriu a braguilha, e regou a árvore.

Desta vez não esperamos pela polícia e nunca mais pisei no Elaine.

Soube que ela foi presa em 98 quando esbofeteou um homem porque ele e a mulher queriam dividir um drinque. Elaine chamou o casal de "lixo branco", ele a insultou de volta e ela soltou o braço.

Foi em cana, algemada no restaurante e nas grades da cela. Implorou para ir ao banheiro.
Foi processada pelo esbofeteado e processou. Tudo acabou num espaguetaço, mas surgiram várias histórias sobre o temperamento da czarina da noite que estava sempre na primeira cadeira do belo bar de dez metros e acomodava As, Bes e siberianos.

A história dela terminou há dez dias. Elaine morreu aos 81 anos. Complicações geradas por um enfizema pulmonar.

O restaurante continua aberto e lá estarei para um drinque em homenagem a ela.

+ Livraria

 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página