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Falsas memórias: o caso da ascensão do nazismo

Mais do que não repetir o passado, estudar o nazismo é importante para construir uma memória correta

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Thales Zamberlan Pereira

Doutor em economia pela FEA (Universidade de São Paulo) e professor da Escola de Economia de São Paulo (FGV-EESP).

nota antiga sobre nazismo
Spurlock Museum

A mancha que o nazismo deixou no século 20 torna o seu estudo inevitável. Alguns defendem a necessidade de estudar a ascensão do nazismo como forma de não repetirmos o passado, outros, talvez mais pessimistas sobre a primeira possibilidade, argumentam que construir uma memória correta do que ocorreu já seria um objetivo desejável. A segunda opção, no entanto, é muito mais relevante do que parece ser, uma vez que pesquisas sugerem que mesmo alemães, que estudam na escola a história da queda da República de Weimar (1918-1933), possuem impressões equivocadas sobre o que aconteceu durante um dos períodos mais relevantes da sua história.

A evidência para essas "falsas memórias" se encontra em pesquisas de opinião mostrando que 38% dos alemães associam a crise da década de 1930, que levou Hitler ao governo, ao período de hiperinflação. Essa relação, no entanto, é incorreta. O período de hiperinflação foi em 1923, mais de uma década antes. A ironia é que essa interpretação, que associa o fim da República ao período da hiperinflação, é próxima à retórica que o partido nazista utilizava.

Desde a sua criação, o partido nazista explorou politicamente o Tratado de Versalhes. Semelhante a outros projetos autoritários que vieram antes e depois, o Tratado se tornou um símbolo: existia uma idealização nacionalista do passado, além de um projeto para restaurar a "glória" que supostamente existia antes de 1918. Sendo um discurso nacionalista autoritário, elementos estrangeiros (os "outros") foram culpados pela decadência da nação. Entre as diversas formas de perseguição dos judeus, a propaganda os acusava de "internacionalistas", ou seja, inimigos do projeto nacionalista dos partidos conservadores.

É importante salientar que o uso dessa retórica da violência independe dos efeitos econômicos e políticos de Versalhes. O que importava era a narrativa, não o conhecimento ou a verdade. Estudos que analisam a retórica nazista argumentam que o seu sucesso político dependia da existência de conflitos e crises constantes e, portanto, o Tratado de Versalhes se tornou um símbolo para a sua propaganda.

Esses ruídos históricos, portanto, dificultam o entendimento sobre quais eventos econômicos explicam a ascensão do nazismo. Existe, por exemplo, um discurso conhecido sobre a aversão que alemães possuem à inflação e como isso é atribuído aos eventos da primeira metade da década de 1920. No entanto, a evidência histórica mostra que a crise foi muito mais severa quando os preços caíram, não quando eles subiram sem controle. O período de hiperinflação não teve um aumento significativo no desemprego e acabou após uma reforma monetária em novembro de 1923. Após isso, a República de Weimar teve até alguns anos de relativa estabilidade. No período após a crise de 1929, no entanto, houve deflação e desemprego em massa.

É natural questionar se mesmo com uma década de distância (a ascensão ao poder ocorre na eleição de 1933), a hiperinflação não pode ter influenciado o surgimento do nazismo. No entanto, estudo de Gregori Galofré-Vilà e coautores apresenta evidência contrária a essa hipótese. Usando dados de variação de preços para mais de 500 cidades na Alemanha, os autores mostram que as áreas mais afetadas pela inflação não tiveram uma parcela maior de votos para o partido nazista em todas as eleições federais alemãs entre 1924 e 1933. Aliás, os dados mostram que regiões com maior aumento nos preços tiveram mais votos para os social-democratas, grupo político de oposição.

Qual foi a causa, então? Dados para eleições entre 1930 e 1933 mostram que as áreas mais afetadas por políticas de austeridade (cortes de gastos e aumentos de impostos) votaram mais para o partido nazista. A radicalização política e o descrédito com os partidos tradicionais ocorreram de forma rápida: o partido nazista recebeu apenas 2% dos votos em 1928, mas conseguiu 38% dos votos quatro anos depois.

Esses resultados mostram a importância de análises empíricas para entender o passado, uma vez que o estudo contradiz interpretações clássicas sobre o tema, como os efeitos do Tratado de Versalhes e da Grande Depressão. Sobre a efeitos do Tratado, além da ausência de relação com a hiperinflação, é importante lembrar que as reparações de guerra não foram totalmente pagas. A crise de 1929 foi importante, mas seus efeitos, como deflação e desemprego, não explicam a variação regional no voto aos nazistas. A evidência mostra que desempregados votavam mais no partido comunista ou nos social-democratas.

Ao melhorar substancialmente o nosso conhecimento sobre o passado, o alerta decorrente desse estudo é não usar os seus resultados para distorcer o presente. A evidência que políticas de austeridade levaram Hitler ao poder não justifica uma retórica contra ajustes fiscais, por exemplo. Essa seria apenas mais uma forma de seletividade histórica, onde indivíduos ou grupos escolhem fatos específicos do passado para legitimar uma narrativa sobre o presente. Assim como Hitler não era de esquerda, ajuste fiscal não é nazismo.

Artigos:

Haffert, Redeker, Rommel. Misremembering Weimar: Hyperinflation, the Great Depression, and German collective economic memory. Economics & Politics, 2021.

Galofré-Vilà, Meissner, McKee, Stuckler. Austerity and the Rise of the Nazi Party. Journal of Economic History, 2021.

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