Jairo Marques

Assim como você

Jairo Marques - Jairo Marques
Jairo Marques

Encantos e desencantos

É justa a preocupação com seus filhos em uma situação nova; acolho minhas vulnerabilidades, mas não vou jogar contra o meu direito de existir

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A ideia era fazer uma surpresa para minha filha biscoita e chamar uma de suas amigas queridas para juntos irmos ao cinema. Era certo que ela amaria o passeio ao lado da "the best", ainda mais para assistir "Encanto", a nova maravilha para pensar na vida criada pela Disney, que ela adora.

Em princípio, o convite parecia ter sido aceito animadamente, mas um silêncio constrangedor surgiu no zap logo que eu disse à mãe da recheio –como vou chamar aqui a garotinha-- que nenhum outro "adulto" iria conosco ao passeio e a dupla ficaria a cargo do "malacabado" cadeirante e pai, vulgo eu, mesmo.

"Ah, essas duas juntas pegam fogo e gostam de aprontar. Tenho receio da recheio dar muito trabalho. Fica para a próxima, tá? Beijo."

Meu desencanto foi imediato, daqueles que deixam marcas no coração bastante longevas. Estava, naquele momento, ganhando mais uma estaca que fixa, em mim e nas pessoas com deficiência, de forma geral, uma incapacidade projetada pelos outros, sem prévia discussão, sem contra-argumento, sem espaços de aprofundamento.

Dessa vez, o preconceito era requintado, porque respingava para além de mim. Minha cria estava sofrendo consequências da condição que não era dela, mas de seu pai. Uva amarga de chupar...

Cena da animação "Encanto", da Disney
Cena da animação "Encanto", da Disney - Divulgação

E como a trajetória da vida sempre faz curvas que nos remetem a refletir a respeito de nossas atitudes e posicionamentos, "Encanto", uma animação com cores e texturas que abraçam a gente do começo ao fim, tenta embutir na cabeça dos pequenos alguns conceitos acerca, justamente, de ampliação de olhares.

Em uma vila colombiana, a família Madrigal tem a graça de seus membros serem presenteados, logo na meninice, com um dom especial, que sempre irá servir para manter o equilíbrio da convivência de todos por ali.

Mirabel, porém, quebra a sequência de agraciados pela vela poderosa e, aparentemente, não recebe nenhum poder mágico. A história se desenrola com a menina oferecendo novas interpretações sobre o que é força, o que é beleza, o que é empatia, o que é coragem, o que é vulnerabilidade e, sobretudo, o que é entender o outro e a si mesmo.

Não romantizo os desafios de um cadeirante dar conta sozinho de uma criança espevitada solta em um shopping center ou em uma muvuca cosmopolita qualquer. Certa vez, tomei banho de Coca-Cola e dei pipoca para os corredores durante um passeio com minha pitchuca, que não topava carregar nadinha, mas, no final, voltamos para casa vivinhos e felizes.

Sempre me preparo para abrir a boca no mundo caso ela me escape em sua euforia de aproveitar a infância, sempre viro galinha choca quando percebo que uma situação pode colocá-la em risco, sempre olho dez vezes para todos os lados antes de fazer uma travessia com ela.

Nada disso nos dá 100% de segurança para nada, é claro, mas nunca será nossa opção viver em uma bolha ou nos entregarmos a uma dita realidade de que a rua será rude com as diferenças que impõem desafios de ir e vir, de escutar, de ver, de falar. Nos interessa muito praticar o amar, o construir nossos elos de pai, filha e, quando der, amigos.

Entendo e acho justa a preocupação de qualquer pai com seus filhos em uma situação nova. Acolho minhas vulnerabilidades, mas não vou jogar contra o meu direito de existir ao lado da minha filha, de assumir posturas de criá-la à revelia do que me incapacitam os outros e isso passa e passará por encantos e desencantos o tempo todo.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.