Jairo Marques

Assim como você

Jairo Marques - Jairo Marques
Jairo Marques

Você é daqueles que dá parabéns para pais de crianças que passam por perrengues na vida?

O tempo muda perspectiva e invoca novos saberes; nem tudo é pura piedade, curiosidade ou ignorância, pode ser um afago genuíno

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Quando eu era menino, tinha verdadeiro pavor de quando alguém se aproximava de mim e de minha mãe para nos parabenizar por eu estar ali, vivão, forte, transitando pela rua como qualquer outro mortal comum, mas tendo eu uma deficiência motora grave.

Certa vez, com o corpo todo engessado em decorrência de uma desgastante, mas necessária reabilitação, o povo lá de casa comprou uma bicicleta de carga para que eu pudesse chegar à escola. Um carro estava muito distante da nossa realidade naquele tempo.

Foi uma chuva de admiração pelas ruas, de acenos comovidos e comoventes pelo fato de o moleque cadeirante, todo tortinho, seguir a trajetória de infância mesmo que acomodado em um bagageiro. Mamãe não chegou a dar autógrafos, mas apoios pela atitude vieram de todos os cantos.

Em uma imagem em preto e branco, um menino sorri com as pernas cruzadas sobre uma cadeira que balança
O colunista Jairo Marques, na infância, já com deficiência - Arquivo Pessoal

Pensava eu: "Por que raios essa pessoa está cumprimentando a gente? Por eu estar fora de casa, passeando, indo para a aula, respirando?". Ficava meio indignado, já fomentando em mim o espírito de que as diferenças precisam ser consideradas dentro de suas realidades, sem sentimentos de coitadismos, de admiração pela banalidade do simples ser ou estar.

Lembro que minha velha sorria meio amarelo, meio sem graça diante das abordagens. Outras vezes, ela debochava para os mais entusiasmados das agruras da pobreza, do nosso jeito meio molambento de seguir em frente.

Só não entendia eu que aqueles cumprimentos todos tinham para ela quase um poder e um incentivo do que pode representar hoje um "curtir", um comentário caloroso nas redes sociais. Era uma espécie de aprovação de seu esforço e seus acertos pelo filho que tinha saído da curva da tal normalidade, mas que estava "dando certo", mesmo todo "errado das partes".

Então, o tempo passou, eu "vinguei na vida", tornei-me pai e fui ao parque com minha filha biscoita. Enquanto a aguardava se esbaforir na aventura de um brinquedo de escalada, um casal, ao lado de uma menina de uns sete ou oito anos, aproximou-se da atração.

"Posso entrar e ficar orientando ela? Assim ela vai se sentir mais segura e curtir o brinquedo, pode ser?", perguntou o pai a um dos atendentes, que pediu um burocrático papel para saber se a garota poderia se divertir por ali.

A menina tinha alguma deficiência visual severa. Talvez fosse cega. Paramentou-se para fazer a escalada enquanto minha menina perdia a paciência diante de um metro e meio de subida.

Fui tomado por uma vontade quase incontrolável de pedir um abraço para aqueles pais, de tacar-lhes um "parabéns", assim, do nada, iguais aos que eu recebia ao lado de minha mãe, quando ainda era cadeirantinho.

Embora eu não tivesse nenhum contexto sobre a realidade daquela família, minha sensação era de que a garotinha estava sendo formada e incentivada com maestria para as árduas lutas da diversidade que ainda há de enfrentar. Tinha convicção que aqueles pais mereciam de mim, que conheço bem os caminhos de pedregulhos da exclusão, um afago sincero. Fiquei calado, me contive.

Ainda vi o trio em outra atração. O casal guiando dedicadamente as mãos da menina sobre uma instalação. Cheguei bem próximo, com os meus parabéns na ponta da língua. Desisti.

O tempo muda perspectiva e invoca novos saberes. Nem tudo é pura piedade, curiosidade ou ignorância. Pode ser, mesmo, um afago, um desejo de que tudo dará certo.

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