Jairo Marques

Assim como você

Jairo Marques - Jairo Marques
Jairo Marques

Qual o poder da sua história?

É bacana servir de inspiração ou fomentar ideia que possa reluzir para além de si mesmo, desde que isso não custe poder também guardar escuridões

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Geralmente, pessoas que pertencem a grupos minorizados carregam no próprio corpo —velho, negro, estropiado, violentado— uma história que fala por si, com elementos que podem representar de fato uma trajetória que motiva ou serem apenas projeções dos outros com base em experiências nem sempre vividas, nem sempre verdadeiras.

Desde que comecei a rabiscar ideias relativas à diversidade e à inclusão, lá atrás, no tempo em que se falava "epa", tive uma preocupação e uma meta: ser firme no discurso de que minha condição e a de milhares de outras pessoas com deficiência não nos cravava um caráter preestabelecido.

Ser cadeirante não quer dizer ser bonzinho, ser cego não ganha automaticamente a chancela de ser honesto, ser surdo não faz de ninguém atento a dores alheias, ter síndrome de Down não garante passaporte para o céu porque só se realizou fofuras na terra.

Um  homem em uma cadeira de rodas está suspenso no ar por cabos. Ele usa capacete vermelho, roupas azul e sorri. Ao fundo, uma rede onde ele desliza
cadeirantes testa equipamento de aventura, montado em praia de Caraguatatuba (SP) (09/09/2016) - Luis Gava/Prefeitura de Caraguatatuba/Divulgação

Eu sou assim como você, que vez ou outra faz xixi fora do pinico, que tem falhas nas condutas, que sempre quer mais, que procrastina, que sente raiva e xinga, que dorme mais cinco minutinhos precisando acordar logo.

Mas não tem como fugir do que é óbvio. Há poder nas histórias de enfrentamento de um mundo torto, de insistência em entrar onde não te querem, de tolerar —por sobrevivência— aquilo que parece intolerável em realidades não alteradas por questões físicas, sensoriais ou intelectuais.

E o que a gente vive nas diferenças, um pouco pela resiliência ou pouco por haver uma outra perspectiva de enxergar as coisas, colabora de maneira genuína para inspirar, para fazer refletir, para servir, talvez, de guia em alguma situação da vida diante de suas adversidades.

Uma amiga me mandou uma foto do livro didático de seu filho com um texto meu, que falava a respeito do impacto que uma rampa ou a falta dela pode ocasionar no cotidiano de um vivente. Então, a minha condição e a energia que emprego para seguir adiante forja minha história que, olha que legal, chega até a sala de aula.

Uma página de livro está aberta em um texto com o título "Não tem rampa". Na parte inferior da página se vê as pontas dos dedos segurando o papel
As histórias da gente podem até constar em livros didáticos - Folhapress

O que é fundamental é não colar diretamente valores edificantes ou desmoralizantes em alguém simplesmente por aquilo que ela aparenta ser ou que os outros querem que ela seja.

Parece um raciocínio simples demais, mas até hoje, eu, um quase dinossauro cadeirante extinto, respondo pelo que não sou, incentivo o que não tenho em essência, sou exemplar em atitudes que nem pratiquei.

Então, vez ou outra, aquele lance da síndrome do impostor me persegue: "Mas você não é o cara que defende as diferenças, como não viu aquela injustiça? Não é você o exemplo do como fazer as coisas mais plurais? Mas se você é assim, porque faz o assado?".

Nessas situações, me sinto um pouco a Anitta que tem lá suas ideias e atitudes bem humanas, mas é sempre posta em contradição… a diferença é que ainda não tenho uma tatuagem no fiofó.

É bacana servir de inspiração ou fomentar alguma ideia que possa reluzir para além de si mesmo, desde que isso não custe poder também guardar escuridões inerentes ao "serumano".

O poder de uma história mora na autenticidade do que se faz para um filho, na forma como você trata um ex-amor, na verdade com que você emana uma mensagem. Não precisamos ser aparentes budas, São Franciscos ou Padres Júlio, que também devem ter lá suas rasuras, para termos algo bom para ser contado, replicado ou para ficar na memória.

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