Em 1991, dois anos após o massacre da praça da Paz Celestial que esmagou o movimento pró-democracia na China, Nancy Pelosi decidiu visitar Pequim. Acompanhada de dois colegas congressistas, a então representante do estado da Califórnia visitou o local sem permissão dos anfitriões e segurou uma faixa com a frase "Para aqueles que morreram pela democracia na China" pintada à mão.
É talvez essa a imagem que a hoje presidente da Câmara dos Estados Unidos espera passar quando posar para fotos com a liderança taiwanesa naquela que é a visita de mais alto nível de um político americano à ilha desde 1997. Pelosi quer mostrar que o Congresso lidera a agenda de oposição à China e para isso vale até visitar um território disputado há mais de 70 anos e que sempre esteve no coração da disputa entre Washington e Pequim.
A Folha conversou com uma analista de segurança nacional que trabalhou no gabinete de Pelosi até o ano passado. Ela pediu para não ser identificada, por temer repercussões profissionais. Especialista na questão taiwanesa e formada em uma universidade da China continental, a profissional diz acreditar que a visita da presidente da Câmara é parte de uma política "mais provocativa" levada a cabo pelo governo democrata e que Biden e Pelosi provavelmente estão em sintonia.
Segundo ela, a questão da política externa, especialmente em se tratando de Pequim, é um dos raros pontos da agenda americana que podem ser considerados bipartidários —e há certo ceticismo quanto aos relatos de que Pelosi teria insistido na viagem para mostrar independência do Legislativo, dadas as várias provocações da Casa Branca desde o início do governo democrata, no ano passado.
Biden chegou a dizer que fontes militares no Pentágono desaconselharam a ida da congressista a Taipé, temendo retaliações, mas sua gestão convidou representante do governo de Taiwan para a posse presidencial e enviou diplomatas para a ilha.
A analista também explica que, embora seja pressionada pelos congressistas a transformar a viagem em demonstração de independência, há certo descompasso entre a política conduzida por Pelosi e as demandas de política externa da ala mais jovem de ambos os partidos. Para ela, a maioria dos deputados e senadores vem de gerações pós-conflitos com o mundo comunista e carrega a memória da disputa ideológica com o bloco soviético —mas a nova fase nas relações sino-americanas demanda pragmatismo.
Erro de cálculo pode ter consequências imprevisíveis
Embora os chineses tenham expressado forte discordância quanto à visita de Pelosi a Taiwan, poucos observadores acreditam em possibilidade de guerra total devido ao evento.
A despeito de autoridades nacionalistas e perfis das Forças Armadas chinesas terem postado ameaças a Washington e à própria presidente da Câmara, a resposta de Pequim não deve vir na forma de hostilidade aberta contra uma representante institucional do Estado americano, na avaliação de Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, coronel da reserva do Exército.
Analista de assuntos militares e estudioso da questão militar em Taiwan, Gomes Filho afirma que os EUA não mudaram a política de "uma só China" e devem trabalhar para abaixar a temperatura no lado chinês —mesmo em meio à visita e a declarações cada vez mais hostis de ambos os lados.
É também baixa a possibilidade de uma operação militar imediata, dada a complexidade de um conflito do tipo. A 150 quilômetros do litoral chinês e com uma geografia que dificulta o desembarque de tropas, Taiwan oferece pouco espaço para as chamadas operações anfíbias, que começam no mar e seguem por terra.
"Além disso, embora a China tenha um Exército que vem se modernizando muito rapidamente, o efetivo é inexperiente para conflitos armados. A última guerra em que a China se envolveu foi em 1979 contra o Vietnã —e eles não foram muito bem", avalia Gomes Filho.
Mesmo assim, o coronel diz que, dada a proximidade do congresso que escolherá a próxima liderança chinesa, em novembro, e as próprias dificuldades domésticas causadas pela Covid, o principal risco da viagem está em como Pequim vai elaborar uma resposta que atenda à pressão da sociedade civil sem desencadear um conflito armado com os EUA. Nesse caso, um erro de cálculo poderia ter consequências perigosas
"Talvez Xi Jinping se sinta obrigado a dar uma resposta mais forte à presença da Nancy Pelosi. É um movimento muito delicado que a China vai ter que tomar", explica. "Contudo, se ela entrou em um avião, é porque dados da inteligência certamente mostram que os chineses não teriam intenção de abatê-lo em voo, a única resposta que levaria à guerra".
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