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Ciclocosmo - Caio Guatelli
Caio Guatelli
Descrição de chapéu ciclismo

Comboio humanitário deixa para trás 20 afegãs de casta ameaçada

Operação da UCI no Afeganistão gera polêmica por não priorizar vulneráveis

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Organizada pela UCI (União Ciclística Internacional), a operação de salvamento de afegãos ameaçados pelo regime extremista Talibã, feita em outubro de 2021, priorizaria ciclistas em situação vulnerável, mas deixou de embarcar dezenas que aguardavam o comboio humanitário. Entre os que foram deixados para trás estavam 20 mulheres ciclistas da minoria étnica hazara, habitantes da província de Bamiyan. O caso ganhou repercussão recentemente, após a ativista americana de direitos humanos Shannon Galpin denunciar privilégios concedidos a amigos e familiares do presidente da Federação Afegã de Ciclismo, Fazli Ahmad Fazli.

Em entrevista ao site CyclingTips, David Lappartient, presidente da UCI, declarou que a intenção era evacuar apenas ciclistas, e lhes auxiliar no processo de asilo em países europeus. Uma lista com 125 nomes —número de assentos disponíveis no vôo fretado pela operação— seria indicada por um comitê composto por Fazli, Galpin e integrantes da Isra-Aid (ONG de ajuda humanitária israelense). Contudo, um conflito entre Fazli e grupo de federados dissidentes, apoiados por Galpin, resultou na decisão da UCI de priorizar as indicações do presidente da Federação Afegã de Ciclismo, deixando de fora do comboio de evacuação todas as indicações feitas pela ativista americana.

Com uniforme preto e hijab, 6 ciclistas pedalam em estrada
As ciclistas da etnia hazara durante treino em Bamiyan, Afeganistão, antes do Talibã tomar o poder - Shannon Galpin

Entre os nomes recomendados por Galpin, e recusados pela UCI após lobby da Federação Afegã de Ciclismo, estavam as ciclistas de Bamiyan e outro grupo de integrantes do time nacional de ciclismo, moradores da capital Cabul.

Para Galpin, o trauma desses afegãos de viver em meio ao novo regime, que lhes priva e pune, foi agravado ao serem deixados para trás. "Os que ficaram se sentiram abusados e abandonados pela sua própria federação de ciclismo", diz a ativista.

Riscos agravados pelo colapso econômico

O drama dos ciclistas afegãos que não embarcaram no comboio da UCI envolve uma combinação de questões sensíveis e que coloca em risco suas vidas. Além da ameaça imposta pelo radicalismo do regime Talibã —que persegue esportistas, em especial as mulheres—, o colapso econômico resultante da evacuação americana aniquilou empregos e deixou os afegãos sem condições estruturais para enfrentar os desafios climáticos comuns dessa época do ano —seca severa e inverno rigoroso.

A debandada dos investimentos americanos —cerca de 75% da economia afegã era abastecida pelos EUA—, fez falir instituições bancárias e pôs no limbo todas as economias de diversas famílias afegãs, que agora não tem dinheiro para comprar comida, remédios e lenha para aquecimento de suas casas. Organizações humanitárias já relatam um surto de fome e alertam para um elevado risco de morte coletiva por desnutrição e frio nos próximos meses.

Xenofobia

Outro fator de grande risco, e que acomete em especial as ciclistas de Bamiyan, é a origem étnica hazara. Minoritária no Afeganistão —compõem apenas 9% dos cerca de 40 milhões de habitantes—, a etnia é pouco tolerada pelos talibãs.

Descendentes da ocupação mongol —séculos 16 ao século 18—, o grupo dos hazara se concentra majoritariamente na província de Bamiyan —noroeste da capital Cabul— e é facilmente distinguível pela preservação de traços mongóis (asiáticos) e pelo seu dialeto. Tais características não seriam tão problemáticas isoladamente. Contudo, o fato dos hazaras serem um grupo muçulmano xiita os coloca em situação vulnerável no novo regime, onde a religião é interpretada de forma radical e onde os novos líderes no poder, de origem pashtun, são muçulmanos sunitas.

Colapso da revolução cultural afegã

A maioria dos ciclistas de Bamiyan, assim como a maioria dos afegãos nascidos no século 21, foram educados sob os costumes ocidentalizados da ocupação americana (2001-2021), onde a conquista da liberdade e da estabilidade econômica faziam parte do cotidiano.

Galpin diz que as ciclistas de Bamiyan lideraram uma revolução, possibilitaram a ascensão do esporte no país, e, ao lado de outras ciclistas da capital Cabul, foram capa de revistas, protagonistas do documentário "Afghan Cycles" e indicadas ao Prêmio Nobel da Paz de 2016. "Elas não eram simples atletas, elas estavam modificando a cultura daquele país", diz Galpin.

As decisões polêmicas da UCI

A ativista americana, que tem larga experiência em projetos humanitários com ciclistas afegãs —trabalha com o assunto desde 2013— questiona as razões pelas quais a UCI decidiu apoiar Fazli. Segundo Galpin, Lappartient foi alertado antes da evacuação sobre a conduta criminosa do presidente da Federação Afegã de Ciclismo.

Galpin diz, e um minucioso trabalho de investigação do repórter australiano Iain Treloar (CyclingTips) confirma: O presidente da Federação Afegã de Ciclismo, Fazli Ahmad Fazli, que é também empresário com negócios na Turquia e no Afeganistão, agiu para barrar mulheres em situação de vulnerabilidade para garantir assentos no comboio de evacuação a seus familiares e amigos.

Entre as acusações contra Fazli, estão casos de corrupção com as finanças da entidade e ameaças e assédio moral contra grupos dissidentes. Ele teria acusado publicamente, através de redes sociais, as mulheres de Bamiyan de serem "falsas ciclistas", o que contribuiu para excluí-las do comboio da UCI.

Para alguns, a atitude do presidente da Federação Afegã pode até ter justificativas —em meio a uma guerra, Fazli buscou salvar os seus mais próximos numa oportunidade rara de garantia à vida. Mas ainda falta um posicionamento oficial da UCI sobre a questão das ciclistas abandonadas à própria sorte.

Enquanto a entidade máxima do ciclismo homenageava Fazli com um diploma de herói pela sua coragem, em sua sede na Suiça, as ciclistas de Bamiyan continuavam em seus casebres, escondidas no anonimato, queimando suas histórias para sobreviver a um regime onde ser mulher, atleta, famosa e revolucionária é, na prática, uma sentença de morte.

Shannon Galpin segue seu trabalho humanitário. A ativista conseguiu angariar doações e já efetuou outras evacuações. Em cinco meses de trabalho contínuo para salvar os mais vulneráveis, comboios independentes organizados por Galpin já retiraram mais de 80 ciclistas que não conseguiram assentos no comboio da UCI.

Galpin conta com apoio de voluntários e doadores de sua campanha, e diz que ainda há muitos vulneráveis que precisam ser evacuados. "Toda a operação é muito delicada, envolve comboios arriscados, pedidos de asilo, novos documentos, novas casas... Não há como retirá-los de lá sem ter como lhes oferecer um futuro estável em outro país, com casa, emprego e estabilidade social. Essa é a parte mais difícil", diz a ativista americana. Ela completa: "ciclistas ao redor do mundo e a indústria da bicicleta precisam colaborar. Afinal, essas mulheres mostraram ao mundo que a bicicleta é mais que um esporte, é um veículo para justiça social e igualdade".

Com uniforme preto e hijab, 6 ciclistas pedalam em estrada
Shannon Galpin no meio das ciclistas da etnia hazara durante treino em Bamiyan, Afeganistão, antes do Talibã tomar o poder - Shannon Galpin

Outro lado

Contatada, a UCI não respondeu à reportagem.

Caridade

Para colaborar com as evacuações independentes de Shannon Galpin, qualquer quantia pode ser doada através de um fundo de caridade (clique aqui).

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