Em busca de um futuro alternativo ao fatídico mercado de diamantes, jovens de Serra Leoa tentam atrair público e investimentos para a sétima edição do Tour de Lunsar.
A competição, que começou em 2013 como um rachão de bairro, na cidadezinha de Lunsar, já é considerada uma das maiores provas de ciclismo da África Ocidental.
Além de revelar talentos, o evento ajuda a promover projetos sociais essenciais para o país, assolado por epidemias, uma guerra civil e governos fracassados.
O mecânico de bicicletas Karim Kamara, um dos idealizadores do evento, guarda uma herança comum entre os jovens serra-leoninos. Ainda criança, Kamara assistiu o assassinato do pai e do tio na Guerra Civil de Serra Leoa (1991-2002) e em sua adolescência sobreviveu à devastadora epidemia de Ebola (2013-2016).
Hoje, em plena pandemia, Kamara se revela um empreendedor de sucesso —se divide entre a organização do Tour de Lunsar e a administração de projetos sociais que usam a bicicleta para ajudar jovens em situação de vulnerabilidade e extrema pobreza.
"Aqui todo mundo ganha menos de 1 dólar por dia. A maioria não tem bicicletas e depende de doações", diz Kamara ao comentar um de seus trabalhos sociais, junto à ONG Village Bicycle Project.
Além de doar bicicletas para jovens se deslocarem ao trabalho, a Village Bicycle Project oferece acesso à educação para meninas moradoras da zona rural. Ao promover o deslocamento dessas jovens de suas vilas até a escola, onde passam o dia, a ONG busca reduzir a incidência da gravidez precoce —problema causado pelo casamento infantil, permitido no país, e que afeta 3 em cada 10 meninas menores de idade de Serra Leoa.
Outro projeto impulsionado pelo Tour de Lunsar é a formação de atletas pelo Lunsar Cycling Team.
Sorie Koroma, hoje com 20 anos, conta que conheceu o projeto quando tinha 17 e estava sem perspectivas. "Vi Karim Kamara treinando alguns meninos e pensei que eu poderia fazer parte daquilo. Eu estava sem saber o que fazer da vida, então me tornei ciclista. Hoje sonho ser um ciclista profissional", disse o campeão do Tour de Lunsar de 2021.
Em 2021, quando Koroma venceu, a competição já vivia uma nova fase. O rachão de bairro com bicicletas adaptadas chamou a atenção do jornalista inglês Tom Owen, que em 2016 escreveu um artigo sobre o tema. A prova ganhou espaço em sites especializados de ciclismo na Europa, dividindo a tela com notícias do Tour de France.
A fama trouxe os primeiros patrocínios. Duas empresas inglesas, uma de suplementação alimentar e outra de vestuário, passaram a doar seus produtos para a turma de Lunsar.
Em 2020, o australiano Lachlan Morton —ciclista profissional famoso por desafios excêntricos—, fez uma doação de kits de uniformes e acessórios de primeira linha, colocando mais uma vez os serra-leoninos sob os holofotes da mídia internacional.
Mesmo com o reconhecimento internacional da brilhante história dos jovens de Lunsar e de suas iniciativas de assistência social, a UCI (União Ciclística Internacional) —que tem um departamento de ações humanitárias chamado "ciclismo para todos"— sequer reconhece a federação daquele país ou menciona a existência de ciclistas num dos países mais castigados do planeta.
É mais um fato negativo, que somado à desastrosa ação de resgate humanitário mal conduzida pela UCI no Afeganistão, mancha a imagem de uma entidade que deveria ser universal, mas que a cada dia confirma sua posição eurocêntrica.
Sem apoio da UCI ou incentivos do governo nacional, a estrutura da prova sempre foi montada no improviso. A organização conta com a ajuda da população local para montar a pista e dar apoio aos competidores.
A mesma equipe que voluntariamente fiscaliza a prova —em uma motocicleta emprestada— é a que faz o apoio neutro dos atletas, oferecendo garrafas de água filtrada e reparos mecânicos. Um carro vassoura, também emprestado, trabalha na assistência dos ciclistas retardatários. O pódio é feito de caixotes de madeira, no meio da rua, enquanto meninos em sandálias seguram no improviso a faixa de patrocinadores.
Karim Kamara diz que fazer ciclismo em Serra Leoa é um grande desafio, mas garante que a prática é segura porque a população toda virou fã do esporte. "A prova trouxe empoderamento aos jovens e isso é motivo de orgulho para o público", diz o jovem organizador.
Todas as dificuldades tornam o espetáculo ainda mais emocionante, lotando as ruas de Lunsar com a mesma energia que o Tour de France lota a Champs-Élysées (prestigiada avenida de Paris onde é feita a chegada da maior competição de ciclismo do mundo).
PARA PARTICIPAR
O Tour de Lunsar 2022 acontece entre 25 e 27 de março, as inscrições estão abertas. Não há distinção entre profissionais e amadores. Todos são acolhidos em três categorias: masculino, feminino e juniores.
O país exige visto de entrada. O documento pode ser obtido no desembarque do aeroporto da capital Freetown, ao custo de 80 Dólares.
Na chegada são exigidos comprovantes de vacinação de Febre Amarela e de Covid. Vacinem-se (mesmo não pretendendo ir ao Tour de Lunsar)!
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