Desde que partiu do Alasca com sua bicicleta, em meados de 2016, a bióloga paulistana Juliana Hirata sempre priorizou caminhos rurais e trilhas em meio à natureza selvagem. Dos 24.000 quilômetros já vencidos, atravessando 16 países, a aventureira pedalou por desertos, florestas e montanhas desafiadoras, quase sempre passando bem longe de grandes cidades.
Dormir na barraca e cozinhar no fogareiro portátil —objetos que carrega amarrados à sua bicicleta— é parte essencial do seu plano. Foram mais de 1.000 noites acampando sozinha em ambientes selvagens.
"No Alasca acordei com a barraca cercada de pegadas de urso, vi alces se aproximarem em uma floresta canadense, e espantei coiotes no deserto do México. Com as cobras me acostumei. Segurança, nesses lugares, é um estado psicológico. A natureza é minha casa".
Foi num raro abandono do ambiente agreste, quando Juliana decidiu sair de uma das trilhas milenares do Império Inca, que sua aventura mudou de clima.
Na última quarta-feira (16), a bióloga fez o check-in num hotel de Ayacucho, cidade no sul peruano onde pretendia se reconectar com a humanidade após período cruzando solitariamente os Andes. Banho quente e cama macia ela não via em semanas, cinema então…
Foi o que fez. Deixou a bicicleta no quarto e, caminhando pelas ruas movimentadas de Ayacucho, achou um cinema. Queria ver coisas do mundo civilizado.
Três horas depois, na volta ao hotel, o mundo civilizado confirmou o que ela já sabia: a natureza selvagem era muito mais segura. Acampando no meio de ursos, alces, coiotes e cobras ela até sentia medo, mas no ambiente agreste não havia sentido nada tão ruim quanto o que sentiu naquela noite urbana.
"Fiquei maluca, sem chão. Foi como se eu perdesse a alma", disse ao descrever a cena que encontrou no seu retorno ao hotel.
"Estava tudo imundo e revirado". O hotel havia sido invadido e o quarto onde estavam seus equipamentos, arrombado. Bicicleta, barraca, fogareiro, saco de dormir e outros equipamentos essenciais para completar sua aventura até o Fim do Mundo (um dos pontos mais austrais do continente americano, na Patagônia argentina) foram levados.
Juliana, que se jogou nessa aventura por conta própria —sem holofotes e sem patrocínio—, se viu obrigada a começar uma peripécia. Decidida e confiante afirmou, "vou recuperar a bicicleta".
Desde então deu início a uma busca incessante pela cidade.
Justo ela, aventureira dos desertos e montanhas, que tanto ama se perder sozinha e incomunicável, tem passado os dias fazendo trabalho de detetive, fuçando as bibocas, se embrenhando nas feiras do rolo, colando cartazes de recompensa pelos muros de Ayacucho.
Desse périplo, Juliana nos traz uma lição: para arriscar a segurança, basta estar no meio da humanidade.
Se uma equipe de cinema seguisse suas pedaladas, certamente fariam um belo filme. Mas acho que homens com câmeras e microfones não captariam a naturalidade dessa mulher de 42 anos que, sozinha, encara ursos, alces, coiotes, cobras e ladrões.
Melhor alguém patrocinar a publicação de seu livro —Juliana já o tem quase todo pronto, mas assim como seus caminhos, sua obra literária segue escondida na natureza selvagem. Aos editores, está dada a dica: "Cartas da Estrada" reúne relatos autobiográficos que Juliana escreveu de dentro de sua barraca.
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