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Ciclocosmo - Caio Guatelli
Caio Guatelli

Ciclovias da zona sul refletem desigualdade social de São Paulo

Investimento em infraestrutura cicloviária prioriza áreas nobres da região

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Antes conhecida como "Ciclovia Faixa de Gaza", apelido dado em alusão ao estreito e inseguro território palestino, a ciclovia do Parque Linear Bruno Covas, na zona sul de São Paulo, foi recentemente transformada em uma das mais seguras de toda a cidade.

A mudança de cenário gerou um forte contraste com outras ciclovias da região, onde a manutenção, que deveria ser feita pela prefeitura da cidade, pouco ou nunca aconteceu.

Marcelo Fabian, 51, pedala na ciclovia do Parque Linear Bruno Covas. "Antes de virar parque estava abandonada, agora está cada vez melhor" - Caio Guatelli

Para alcançar o nível atual, a estrutura do novo parque, gerido pelo consórcio Novo Rio Pinheiros, ganhou investimentos privados de R$ 23 milhões que, segundo a administração, foram aplicados na construção de benfeitorias para todo tipo de usuário.

Criada em 2013 para desviar o fluxo da ciclovia que fica na margem oposta, interrompido até hoje pelas obras do inacabado Monotrilho, a ciclovia reformada do novo parque tem 8,2 Km de asfalto perfeito, é parcialmente iluminada, deu origem a uma ponte flutuante sobre o rio Pinheiros e é vigiada por 40 policiais militares ciclistas.

Tanta benfeitoria tem aumentado a circulação de trabalhadores que utilizam a via desde a época "Faixa de Gaza", e tem atraído uma legião de atletas amadores, moradores da vizinhança rica, que buscam pista lisa e segura para treinar com bicicletas que chegam a custar até R$ 100 mil.

O local fica a apenas 2 Km das ciclofaixas periféricas do distrito do Campo Limpo e da favela de Paraisópolis, as quais, segundo relatório do Auditoria Cidadã, estão entre as piores em estado de conservação de toda a cidade.

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Letícia Andrade, 44, pedala em Paraisópolis: trechos da ciclovia Hebe Camargo estão completamente apagados, falta limpeza e moradores ainda não notaram o patrulhamento em bicicleta - Caio Guatelli

Por essas outras estruturas, que juntas tem o mesmo comprimento da ciclovia do parque, circulam majoritariamente bicicletas que custam em média R$ 500.

Com pouca ou nenhuma manutenção desde sua inauguração, em 2014, as ciclofaixas Parque Arariba, no Campo Limpo, estão tão apagadas que motoristas de ônibus, caminhões e carros nem percebem sua existência. Além da falta de sinalização e dos poucos tachões de proteção, os ciclistas que circulam por ali reclamam também da falta de conexão com outras ciclovias e do excesso de buracos causados por desgaste ou por obras inacabadas no pavimento da região.

"A tinta apagou e esqueceram de repintar. [A ciclofaixa] está uma buraqueira só. Por causa disso já caí e até fui atropelado, 3 vezes", disse o aposentado Amauri França, 58, que precisa fazer entregas de bicicleta para completar o orçamento.

Também a 2 Km de distância do novo parque fica o início da ciclofaixa Hebe Camargo. A estrutura conecta os condomínios de luxo dos bairros Panamby e Morumbi à favela de Paraisópolis. Além de trechos apagados ou que precisam de algum tipo de manutenção, o local recebe reclamações de ciclistas que se sentem inseguros por ali.

A arrumadeira Letícia Andrade, 44, moradora da favela Paraisópolis, usa a bicicleta para chegar ao trabalho no Panamby. Em 2019, teve sua bicicleta roubada no trajeto e levou 2 anos para juntar dinheiro e comprar uma outra, de R$ 700. "Nunca vi policial pedalando em Paraisópolis. Lá no Panamby e no parque do rio Pinheiros eles aparecem, aqui não", disse enquanto pedalava na ciclovia da favela.

Entre os dias 5 e 8 de julho, 40 policiais militares de 8 batalhões de São Paulo passaram por um treinamento nas dependências do Parque Linear Bruno Covas. Segundo o capitão Daniel Veiga, do 1º Batalhão Metropolitano da Polícia Militar, as operações com bicicleta já existem em outras áreas da cidade, mas "por conta da demanda da nova estrutura, a Polícia Militar está buscando um trabalho diferenciado dentro do parque".

Para o pesquisador e consultor em mobilidade Thiago Benichio, a desigualdade entre a ciclovia do parque e as outras da zona sul é consequência de uma falha do Estado (prefeitura e governo estadual) em cumprir seu papel de prover ao cidadão os serviços de mobilidade e segurança com qualidade e sem distinção por todo o território.

Benichio observa, ainda, que a ciclovia do parque pode até ser boa e segura para a prática esportiva ou de lazer, mas continua falha como estrutura de mobilidade urbana por prover poucos acessos. "O lugar é seguro, mas a ciclovia está excessivamente segregada do resto da cidade. Por todo seu trajeto existe o rio e 6 pistas expressas [da marginal Pinheiros] que impedem o acesso de moradores periféricos. Problemas como esse ainda não foram resolvidos nem pela iniciativa privada nem pelo Estado".

Como exemplo, Benichio cita a passarela da estação Santo Amaro do Metrô. A estrutura, que transpõe o rio Pinheiros, conecta a ciclovia do novo parque à ciclovia Franco Montoro, na outra margem. "Quem precisa atravessar de uma margem à outra com a bicicleta só tem acesso liberado entre 10h e 16h e é obrigado a pagar uma passagem de metrô para usar o acesso. Isso desmonta a função social de prover mobilidade acessível a todos em tempo integral".

O auditor fiscal Willian Veríssimo, 26, mora em Diadema (cidade vizinha de São Paulo) e trabalha durante a madrugada no bairro Cidade Jardim (zona sul de São Paulo). Na ida ao trabalho, à meia-noite, Veríssimo encontra a ciclovia Franco Montoro fechada e não tem outra solução a não ser pedalar por outras vias menos seguras. Já na sua volta, durante o dia, ele usa as ciclovias das duas margens. "De madrugada o acesso que me atende é fechado. Só consigo usar toda a estrutura durante o dia, quando a ciclovia de lá [ciclovia Franco Montoro] fica aberta e conectada à ciclovia do parque", disse ele às 8h de quinta-feira (7), ao atravessar a passarela da ponte João Dias —uma das 3 únicas conexões diretas entre as ciclovias das duas margens.

O auditor fiscal Willian Veríssimo no acesso à passarela João Dias, que interliga as duas ciclovias - Caio Guatelli

Michel Farah, empresário que administra a concessão da ciclovia Franco Montoro e que participa do Consórcio Novo Rio Pinheiros, diz que prevê implantar novas conexões entre as duas ciclovias ainda este ano, e que a ciclovia do novo parque deve alcançar a malha cicloviária da represa Guarapiranga até dezembro.

Farah indica ainda que, também para 2022, está prevista a reabertura do trecho interrompido pelas obras do Monotrilho na ciclovia Franco Montoro. "Quando isso acontecer, e a demanda aumentar, a administração da ciclovia pretende manter os portões abertos 24 horas por dia".

Em nota, a prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Mobilidade e Trânsito e da Companhia de Engenharia de Tráfego, esclarece que as estruturas localizadas na Avenida Hebe Camargo, bem como as vias do Parque Arariba, estão elencadas no edital de licitação do contrato de manutenção para ciclovias e ciclofaixas, já publicado no Diário Oficial da Cidade em 5 de julho.​ O contrato prevê a manutenção nos 700 Km de estruturas cicloviárias existentes na cidade e tem como objetivo corrigir as deficiências como as indicadas pela Auditoria Cidadã 2022.

Esta foi a quarta de uma série de 6 reportagens sobre a estrutura cicloviária de São Paulo. No próximo domingo (17), o Ciclocosmo abordará as características particulares das ciclovias da região leste da cidade.

Todos os deslocamentos para a apuração desta matéria foram feitos em bicicleta.

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