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O que o intestino nos ensina sobre tolerância

Como o sistema imune sabe que não deve combater o feijão do almoço?

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A função do sistema imune é combater patógenos que vêm de fora, certo? Não exatamente. A maior parte dos micróbios que chegam ao nosso organismo não é nociva. Para o imunologista Daniel Mucida, é mais ou menos como a política migratória do ex-presidente Donald Trump nos EUA: ela parte do princípio de que imigrantes são como patógenos que devem ser combatidos quando, na verdade, eles fazem mais bem do que mal ao país. "Devemos desenvolver tolerância em vez de muros", diz.

No caso do nosso corpo, a porta de entrada desses imigrantes bem-vindos é o intestino. Em seu sistema imune, a maioria das interações não acontece com patógenos, mas com microrganismos e moléculas provenientes da alimentação. São trilhões (trilhões mesmo, não é figura de linguagem) de bactérias inofensivas que formam a chamada microbiota.

Arte ilustra uma mulher negra de cabelos presos, saia verde e blusa vermelha, operando um instrumento que remete a tecelagem, envolta por formas abstratas vermalhas e azuis, lembrando as paredes de um intestino.
Ilustração: Joana Lavôr - Instituto Serrapilheira

Mas como o corpo é capaz de identificar quais organismos podem nos causar mal e quais devemos tolerar e assimilar? Em outras palavras, como seu corpo sabe que deve combater uma bactéria nociva e deixar em paz o feijão que você come no almoço? Entender como acontece esse equilíbrio da resposta imune é o objetivo de Mucida, professor e chefe do Laboratório de Imunologia da Mucosa na Universidade Rockefeller, nos EUA.

Com uma área de cerca de 300 metros quadrados, a mucosa intestinal humana é a maior superfície corporal exposta ao mundo exterior – do qual se separa apenas por uma fina e permeável camada epitelial. Assim, não surpreende que no intestino haja mais linfócitos, as células de defesa, do que no resto do corpo. É ali que está o nosso sistema imune mais complexo e desenvolvido, com mais anticorpos do que no sangue. E, mesmo com essa alta atividade imunológica, além de lutar contra patógenos, o órgão dá um jeito de exercitar a assimilação. Então, como de fato opera a imunologia do organismo?

"Para entender o sistema imune, temos que entender o que está em torno dele", diz Mucida. É aqui que entram em cena os famosos conceitos da imunologia de self e não self (que aqui nada têm a ver com a psicologia), muito estudados pelo imunologista português António Coutinho: as diferenças entre moléculas que são próprias do corpo e aquelas que vêm de fora.

O que o grupo de Mucida já demonstrou é que o próprio ambiente intestinal facilita esse equilíbrio entre tolerância e muros ao compartimentalizar a resposta. O sistema imune prepara algumas células imunológicas para aceitar os nutrientes da dieta encontrados no intestino delgado, enquanto prepara outras para lidar com organismos que estão no intestino grosso. A natureza dos sinais oriundos das diferentes partes do intestino e os mecanismos pelos quais eles influenciam a adaptação das células imunes, no entanto, ainda não são bem compreendidos. "Como o intestino vê uma proteína ingerida na dieta de forma diferente da proteína de uma vacina que vai gerar resposta imune?", se pergunta o cientista.

Claro que esse equilíbrio, por mais fascinante que seja, não é perfeito. O sistema imune pode exagerar e lançar ataques desnecessários, desencadeando alergias alimentares ou doença celíaca. Os livros ensinam que isso é uma falha na resposta imunológica, mas Mucida tem outra visão, compartilhada com Ruslan Medzhitov, imunologista da Universidade Yale. "A alergia não é necessariamente um erro da resposta imune. Ela pode ter sido selecionada evolutivamente para combater ou eliminar substâncias nocivas; algo que pode ser visto como ruim para o organismo, que pode estar na casca do camarão ou no lipídio do amendoim. É parte do controle nutricional do intestino."

Outro fenômeno que passou a ser mais estudado no campo da imunologia é a tolerância à própria resposta inflamatória. É quando a tentativa de eliminar um vírus gera uma inflamação mais danosa que o próprio vírus -- caso do coronavírus, cuja resposta imune tem causado danos nos pulmões de pessoas infectadas. "Aqui a dúvida é: como o sistema nervoso do intestino, um órgão permanentemente inflamado por natureza por causa da alta atividade imunológica, consegue lidar bem com essa inflamação crônica?"

Para investigar tudo isso na prática, o laboratório de Mucida utiliza camundongos gnotobióticos, ou seja, isentos de microrganismos. Os animais são colonizados com bactérias específicas e os pesquisadores estudam as respostas a essas bactérias. Também avançam os estudos in vitro com organoides --uma espécie de mini-intestino no qual induzem as interações que querem observar. É uma opção que o imunologista, vegetariano, tende a preferir para o futuro, à medida que a tecnologia evolua, por preservar os animais.

Graduado em ciências biológicas pela UFMG e com doutorado em imunologia pela USP, o mineiro de Belo Horizonte, de 42 anos, foi um dos 33 contemplados, no final de setembro, com um financiamento de 9 milhões de dólares do prestigiado Howard Hughes Medical Institute (HHMI). Mas, fora do laboratório, Mucida pensa mais em política do que em ciência --e, naturalmente, na interseção entre as duas.

A analogia entre o sistema imune intestinal e Donald Trump, aliás, não é aleatória: nos EUA desde 2010 como professor da Rockefeller (onde foi efetivado como titular em março deste ano), Mucida é crítico ferrenho de governos com tendências antidemocráticas e conservadoras. No Brasil, ele vê problemas estruturais no ecossistema de pesquisa que vão além do orçamento cada vez mais reduzido e que dificultam o desenvolvimento da ciência.

"O sistema de pesquisa científica no Brasil não facilita a presença de estrangeiros, e é muito difícil fazer ciência de ponta relevante sem diversidade, em todos os sentidos", comenta. "Além disso, a carga horária de aulas do pesquisador brasileiro é muito alta e dificulta a dedicação ao laboratório, e a burocracia exagerada engessa o que se pode fazer. Mas tudo isso tem prioridade secundária ao financiamento de pesquisa. Com a verba atual é impossível fazer ciência. Dá muita tristeza."

Durante o pós-doc no Instituto La Jolla de Imunologia, na Califórnia, Mucida se viciou em surf. Desde então, viaja a cada dois anos para a Indonésia para se dedicar ao esporte, além de praticar escalada. São as distrações do cientista quando não está pensando na tolerância --tanto aquela que o intestino parece dominar bem quanto a que nós ainda temos a aprender.

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Clarice Cudischevitch é jornalista, coordenadora do blog Ciência Fundamental e gestora de Comunicação no Instituto Serrapilheira.

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