Ciência Fundamental

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Descrição de chapéu tecnologia genética

Ser vivo ou ser máquina, eis a questão

Tecnologias inspiradas em seres vivos se reinventam a cada dia

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Daniel Valente

A primeira etapa na montagem de uma máquina costuma ser o projeto: como queremos que a máquina seja, onde cada peça deve entrar. Se o projeto se basear em um organismo vivo, o foco será imitar uma funcionalidade desse ser. Inspirados pelo voo dos pássaros, inventamos as aeronaves. Interessados na potência de locomoção dos cavalos, criamos veículos terrestres. Curiosos com a capacidade de memória e de pensamento do cérebro, fizemos computadores. Nossa necessidade de planejamento decorre do fato de que computadores, automóveis e aeronaves não se montam sozinhos.

Contudo, pássaros, cavalos e cérebros não necessitam de planejamento humano para existirem. Essa observação sugere um novo paradigma de construção de tecnologias: a automontagem e a autoinovação. As asas de um pássaro, por exemplo, montam-se a si próprias, na medida em que desenvolvem a forma exata para o voo do pássaro sem um projeto humano que prenuncie o ordenamento dos ossos, dos músculos e das penas. A capacidade de voar é também um exemplo de autoinovação, dado que os primeiros organismos unicelulares da Terra não tinham estruturas fisiológicas para tal. Dominar uma parcela dessa sofisticada tecnologia de automontagem e autoinovação do mundo vivo exigiu avanços científicos.

Arte ilustra duas figuras femininas caminhando que remetem à personagem Rachel, de Blade Runner. Elas estão sobre um fundo vermelho que se mistura à roupa. Há uma coruja à direita.
Ilustração: Lívia Serri Francoio - Instituto Serrapilheira

Em 2018, Frances H. Arnold foi reconhecida pelo Prêmio Nobel de Química por ter descoberto a chamada evolução dirigida de enzimas, produzindo inclusive exemplares inéditos no mundo biológico. Isso significa manipular os princípios evolutivos que permitem a autoinovação. Assim é possível induzir organismos vivos (bactérias) a construir máquinas moleculares (enzimas) de interesse humano; por exemplo, biocatalisadores que substituam seus equivalentes industriais mais tóxicos. Em 2020, foi a vez de Emmanuelle Charpentier e de Jennifer A. Doudna serem agraciadas com o Nobel, também em química, por descobrirem um método de edição genômica a partir do sistema imune de bactérias. A tesoura molecular encontrada pelas pesquisadoras permite controlar processos de automontagem das células vivas e, quem sabe, abrir caminhos para novas terapias contra o câncer e para a cura de doenças hereditárias.

A próxima fase da mudança de paradigma atrai não somente químicos, mas também físicos. Uma limitação da tecnologia de automontagem é o uso, de partida, do código genético e de outros mecanismos bioquímicos que evoluíram ao longo de cerca de três bilhões de anos. Como foi que esse código genético e os primeiros processos bioquímicos se auto-organizaram, tendo somente moléculas mais simples como recurso inicial? A pergunta pretende ser mais ampla do que uma busca pela origem da vida. A ideia é descobrir uma diversidade de máquinas automontáveis, autorreparáveis, adaptáveis e, se possível, autoinováveis, a partir de componentes básicos abundantes. O objetivo é aprender os princípios físicos gerais que resultaram na transição da matéria inanimada para a viva. Dito de outro modo, o desafio é encontrar tecnologias inspiradas no surgimento da vida.

Enquanto químicos pesquisam o aparecimento de comportamentos similares aos dos organismos vivos em agregados de moléculas, físicos querem testar sistemas ainda mais diversos – fótons, elétrons, átomos e objetos macroscópicos. Em 2015, Dilip Kondepudi liderou um experimento ilustrativo nesta linha. Reuniu uma dezena de esferas metálicas milimétricas imersas em um óleo viscoso. A equipe de pesquisadores mostrou que, caso passassem por essas esferas uma corrente elétrica gerada por uma fonte externa, elas se organizavam em forma de minhocas, e moviam-se como tais. As minhocas de metal também moviam-se em direção à fonte de energia, nos fazendo lembrar da intencionalidade de um ser vivo na sua procura por uma fonte de alimentação. Nesse sentido, o experimento pode ser interpretado como um tipo de metabolismo criado por conta própria. O sistema ainda se curava de forma autônoma em resposta a lesões mecânicas. Embora demonstrem automontagens inspiradas nos seres vivos, experimentos como esse ainda não apresentam inovações espontâneas como as que dão origem a novas espécies biológicas.

Pelo fronte teórico, há hipóteses e modelos promissores em debate. Também em 2015, o físico Jeremy England propôs o conceito de adaptação dissipativa, um princípio termodinâmico para descrever como a matéria, quando alimentada por certas fontes de energia, pode se tornar tão organizada e complexa quanto as partículas que compõem a célula de uma bactéria ou o corpo de um pássaro. É sabido que, quando interrompida a alimentação externa de energia a um sistema físico qualquer, seja uma máquina ou um ser vivo, a tendência é que esse sistema atinja o chamado equilíbrio termodinâmico, um estado da matéria que melhor descreve o ar inerte em um quarto fechado do que o vento que entra por uma janela aberta. Se um organismo estiver em um estado de equilíbrio térmico, certamente não estará vivo. Mas quando um sistema é excitado por forças externas e recebe energia capaz de removê-lo do equilíbrio, fenômenos excepcionais podem ocorrer. Em especial, átomos podem participar dos movimentos internos que caracterizam um sistema vivo. Resta o desafio de refinar as hipóteses e os modelos atuais, e de confrontá-los com a prática.

Tecnologias inspiradas na transição da matéria não viva para a viva são uma ideia ousada e com potencial para o avanço da ciência fundamental. Se conseguiremos alcançá-las ou não, eis a questão.

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Daniel Valente é físico e professor na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

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