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A gastronomia misteriosa do cérebro

O que o "cozinheiro" dos neurônios pode revelar sobre as doenças neurológicas

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Eduardo Zimmer

O cérebro é sem dúvida o órgão mais misterioso do corpo humano, protegido por muitas barreiras biológicas como a calota craniana, as meninges, a barreira hematoencefálica, entre outras. Uma verdadeira trincheira que o mantém seguro e, assim, preserva quem somos, pois é nessa incógnita inteligente com cerca de um quilo e meio que guardamos o nosso eu. E mais: você, leitor, só está lendo esse texto porque ele está sendo processado pelo cérebro. Entretanto, essa maquinaria única ainda não conseguiu ser replicada nem pelos mais modernos algoritmos de inteligência artificial. De fato, como a matéria física se transforma em pensamento?

Entender o funcionamento do cérebro é um dos maiores desafios dos cientistas. O neurocientista Eric Kandel, prêmio Nobel em Fisiologia e Medicina em 2000, vai além e no seu interessantíssimo livro "Mentes Diferentes: O que Cérebros Diferentes Revelam sobre Nós" ele sugere que entender cérebros que não estão funcionando corretamente pode ser o caminho para compreender seu funcionamento um pouquinho melhor. Compreender o cérebro doente é um dos maiores desafios da medicina moderna, que começa no momento em que precisamos acessá-lo, já que ele é protegido a sete chaves.

Arte ilustra uma figura humana vestindo uma roupa de chefe de cozinha; um grande astrócito faz as vezes de sua cabeça. A pessoa segura um frasco semelhante a de catchup e coloca sobre um prato de refeição em que dentro está um cérebro.
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Nas últimas décadas, porém, foram desenvolvidas diversas técnicas de imagem que possibilitam a visualização desse órgão de maneira não invasiva. A mais conhecida é a ressonância magnética, que nos permite examinar as estruturas cerebrais. Mas e o funcionamento do cérebro, como poderíamos avaliar? Ele não tem um ciclo rítmico de batimentos como o coração, mas se comunica pelas famosas sinapses que podem ser avaliadas por um outro exame não invasivo chamado tomografia por emissão de pósitrons, mais conhecido como PET Scan.

O PET Scan é um exame de imagem que utiliza uma molécula radioativa que, após ser administrada ao paciente, emite radiação e é detectada pelo equipamento. A explicação técnica desse exame parece filme de ficção científica – como assim, injetar um composto radioativo no nosso organismo? O leitor pode lembrar do "adamantium", liga metálica fictícia, administrada nas veias do personagem Wolverine da famosa franquia de filmes "X-Men", mas no exame a quantidade é tão pequena que não existe perigo ou chance de o indivíduo se tornar um mutante.

As moléculas radioativas administradas podem variar, mas a mais empregada é a glicose radioativa — a familiar glicose, só que acoplada a uma molécula radioativa. A glicose é o principal combustível energético do cérebro – cada 100 gramas de cérebro consomem cerca de 5 miligramas de glicose por minuto. Essa glicose toda vem da dieta ou de alguns reservatórios que temos no nosso corpo. Aliás, ainda bem que o cérebro não depende de gasolina como os automóveis, pois atualmente no Brasil seria impossível arcar com os "custos do pensamento".

Com essa glicose radioativa conseguimos estimar a quantidade de combustível que o cérebro está utilizando e definir se o funcionamento está correto ou não. Por exemplo, um cérebro que está consumindo pouca glicose é interpretado como um cérebro cujos neurônios estão com dificuldade de se comunicar, fenômeno que ocorre em algumas doenças neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer.

Essa interpretação biológica do exame de PET com glicose radioativa foi definida há cerca de quarenta anos. Até que estudos recentes demonstraram que outra célula do cérebro parece ter a preferência pela glicose, uma célula em formato de estrela chamada astrócito. O astrócito parece ser o cozinheiro do neurônio: ele busca a glicose no sangue, prepara uma comidinha saborosa, o lactato, e envia para os neurônios. Esse lactato é prontamente utilizado pelos neurônios para produzir energia para que as sinapses funcionem de maneira correta. Esse acoplamento neurônio-astrócito parece ter uma função evolutiva muito especial e, certamente, está relacionado com as particulares cognitivas únicas que nós, Homo sapiens, temos.

Essa descoberta tem causado uma confusão na interpretação biológica desse exame que já é utilizado por décadas na clínica médica. Mudanças no consumo de glicose do cérebro são mesmo causadas por neurônios doentes? Ou será que são os cozinheiros que não estão sendo capazes de preparar a janta dos neurônios? Vem aí uma revolução "gastronômica" na área das neurociências, e os próximos capítulos podem mudar completamente como entendemos o cérebro e tratamos transtornos neurológicos.

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Eduardo Zimmer é bioquímico e professor no Departamento de Farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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