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Descrição de chapéu genética

Nasce uma praga: as origens do sarampo

Como a ciência ligou o surgimento da doença às primeiras grandes cidades sem ter registros escritos

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Gabriela Cybis

O sarampo já foi daquelas enfermidades que todos conheciam de perto, uma das famigeradas doenças da infância. Até a década de 1960, estima-se que todo ano impressionantes 2,6 milhões de pessoas morriam no mundo por causa dela. Se hoje essa praga é um tanto desconhecida, isso se deve ao enorme sucesso da vacinação.

A vacina, desenvolvida em 1963, foi distribuída por meio de uma campanha global que atingiu mais de um bilhão de pessoas. Resultado: a mortalidade por sarampo no planeta foi reduzida a 73 mil óbitos em 2014. Desde então, porém, esse número tem subido devido à desaceleração da vacinação.

Arte ilustra uma vaca em segundo plano e uma mulher em primeiro plano. O fundo da imagem é vermelho, e há pontinhos coloridos espalhados que remetem a um vírus no ar.
Ilustração: Valentina Fraiz - Instituto Serrapilheira

Mas se a vacina é uma poderosa ferramenta com potencial de encerrar a história do sarampo, como foi seu início? O sarampo acompanha a humanidade há séculos. Os primeiros relatos clínicos foram escritos pelo médico persa Rhazes no século X Era Comum (EC) e a partir daí foram registradas epidemias devastadoras. O que o vírus Measles morbillivirus (MeV), causador da doença, pode nos dizer sobre seu passado?

Há tempos pesquisadores vêm contribuindo para pôr essa história de pé. O MeV é um dos agentes infecciosos mais transmissíveis que conhecemos, infecta comunidades inteiras num piscar de olhos. Como essa infecção produz uma imunidade duradoura, o vírus se mantém na população sobretudo pelo nascimento de crianças suscetíveis. Nesse contexto, um dos estudos clássicos da modelagem epidemiológica mostrou que existe um tamanho crítico de comunidade, em torno de 250 mil-500 mil pessoas, abaixo do qual o MeV não consegue se manter endêmico na população. Em comunidades menores ele rapidamente infecta todo mundo e é extinto.

Uma das fontes mais ricas de informação sobre a identidade do vírus está em sua sequência genética. Comparações dessa sequência às de outros vírus similares identificam como seu parente mais próximo o já erradicado Rinderpest morbillivirus (RPV), responsável por uma doença devastadora em bovinos. É provável que em algum momento um ancestral do MeV tenha rompido a barreira das espécies, pulando de um bovino para um humano devido à proximidade trazida pela domesticação.

Mas quando esse evento fatídico teria ocorrido? A resposta também pode estar nas sequências genéticas, obtida por modelagem estatística de sua evolução molecular. Datar o ancestral comum entre MeV e RPV, que corresponde a um vírus bovino que existiu antes da passagem entre as espécies, é um problema de calibração: comparar as sequências nos dá uma estimativa de quantas mutações ocorreram desde esse ancestral, mas como calibrar o que isso significa em termos de tempo?

Diversos vírus coletados em diferentes períodos são utilizados para essa calibração: métodos estatísticos contrastam as datas de amostragem com as diferenças entre as sequências da amostra para datar esses eventos ancestrais. Entretanto, para uma calibração de qualidade é importante que as escalas temporais sejam compatíveis. Isso é um problema para o sarampo: queremos datar um evento que ocorreu há muitos séculos e a amostra é toda muito nova (com exceção da linhagem utilizada para a confecção da vacina, as sequências eram todas posteriores a 1990).

Em um estudo recente, examinando coleções antigas de amostras de pulmão preservadas em museus, pesquisadores buscaram por instâncias em que a pessoa teria morrido de sarampo. Então aplicaram técnicas de extração de material genético na expectativa de encontrar sequências suficientemente preservadas. Bingo! Três novas sequências foram adicionadas à amostra, uma de 1912 e duas de 1960. Com essa adição e a utilização das técnicas estatísticas mais modernas, foi possível melhorar a datação. Enquanto antes se acreditava que o ancestral tivesse vivido no século 9 EC., agora as estimativas apontam para o século 6 Antes da Era Comum (AEC).

Bem, como então se deu o início da história do sarampo? Ainda não temos uma resposta definitiva, e a ciência segue trazendo novos achados. Mas uma das nossas melhores hipóteses é a seguinte: desde a domesticação, humanos antigos e bovinos viviam em proximidade. Diversas vezes ao longo dos séculos alguma linhagem de RPV cruzou a barreira das espécies e infectou humanos, mas esses surtos não se mantiveram por muito tempo. Por volta do século 4 AEC., em diversos locais do antigo mundo começaram a surgir cidades e comunidades com populações maiores que o tamanho crítico de 250 mil pessoas.

E foi só partir desse momento (e após o ancestral comum) que um dos eventos de infecção de humanos pelo vírus bovino se estabeleceu permanentemente nas populações humanas como ancestral do sarampo. Foi então que teve origem nossa longa e triste convivência com essa praga, que tomara um dia a vacina possa nos ajudar a pôr um ponto final.

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Gabriela Cybis é bióloga, professora de Estatística na UFRGS, atua em modelagem estatística para genética.

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