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Sem provar nada a ninguém

Por que matemáticos gostam tanto de demonstrações formais

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Edgard Pimentel

Há alguns anos, a caminho do Rio de Janeiro, fiz uma escala no Heathrow, o famoso aeroporto de Londres. Eu vestia uma camiseta estampada com uma fórmula ligada ao modelo padrão da física de partículas, seguida da frase "Nosso universo até aqui". Um garoto, com uma camiseta do Flamengo e um pronunciado sotaque britânico, olhou minha camiseta e perguntou: "Is that so? – é isso mesmo?". Lembro ter respondido "hopefully!", tomara!, encantado com a curiosidade do menino.

"Is that so?" Esta pergunta quase infantil é uma das premissas da pesquisa moderna em matemática. Dado um fato, ou uma conjectura, ou uma simples possibilidade, parte do trabalho é tentar entender se "é isso mesmo". E aqui estamos falando de demonstrar teoremas, como o de Pitágoras. Quando (diariamente) usamos este teorema, estamos convencidos de que seu conteúdo é verdadeiro, ninguém duvida. Assim, quando ia da Gávea até o Jardim Botânico, eu fazia um atalho por dentro do jardim, já que a hipotenusa é o caminho mais curto.

Arte ilustra uma mulher cheirando flores, mas, no lugar das pétalas, há elementos matemáticos (números e letras). Na parte inferior, uma legenda diz "Jamais te esquecerei"
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Mas há uma pergunta mais fundamental: "Why is that so?". Por que queremos provar teoremas? Quando um avião voa, testemunhamos a turbulência; quando um barco navega, percebemos a formação de ondas no seu entorno; quando se injeta água em um poço de petróleo, extrai-se óleo — e sabemos tanto que até se conjectura que a extração seja mais eficiente se injertamos água doce.

Em resumo: conhecemos como os fluídos se comportam, seja o ar, a água ou o petróleo. Por que precisamos de um objeto matemático, como a equação de Navier-Stokes, para modelar a mecânica dos fluidos? Mais ainda: por que o Clay Mathematics Institute oferece um prêmio de 1 milhão de dólares a quem demonstrar que realmente existem soluções para esta equação? Esta é uma pergunta muito difícil. Afinal, trata das razões para provar que o mundo que conhecemos é matematicamente como o conhecemos.

Uma outra classe de exemplos pode soar distinta. Fatos que parecem óbvios, mas que ainda assim queremos demonstrar. Vamos fazer um exercício, que chamaremos de 3N+1. Escolhemos um número qualquer. Se for par, dividimos por dois. Se for ímpar, multiplicamos por 3 e somamos 1. E continuamos. Assim, se começamos com 5, multiplicamos por 3 e somamos 1, o que nos dá 16. Porque 16 é par, dividimos por 2 e obtemos 8. Como 8 ainda é par, dividimos por 2, o que resulta 4. O próximo passo devolve 2 e o seguinte devolve 1. Como 1 é impar, multiplicamos por 3 e somamos 1, apenas para obter 4! E ficamos para sempre em um ciclo 4-2-1!

Mais do que o esquema tático de uma equipe que teve três jogadores expulsos e aposta na retranca, 4-2-1 é um ciclo muito especial. A razão é simples: ninguém encontrou um número que, ao começar o 3N+1, chegasse a outro ciclo. Todas as tentativas terminam do mesmo jeito: 4-2-1. O leitor pode pode fazer um exercício com seu número favorito.

Não existe um teorema que garanta esta regra. Nunca foi possível provar este fato. Nem sabe-se se existe algum número que, submetido a este algoritmo, gera um ciclo diferente. Agora, se todas as tentativas conhecidas terminaram do mesmo jeito, poderíamos nos convencer de que será sempre assim?

Em 1993, Arthur Jaffe e Frank Quinn publicaram um artigo no Boletim da Sociedade Americana de Matemática discutindo o papel e a importância das demonstrações. O artigo é interessante em várias dimensões, mas escorrega ao sugerir que o uso excessivo de demonstrações rigorosas torna a matemática mais lenta e, sobretudo, mais difícil. Uma série de cartas, escritas por matemáticos e matemáticas de grande prestígio, foram publicadas no mesmo boletim confrontando certos aspectos do artigo.

O debate gerado por estas publicações é riquíssimo. Em particular, a ideia de que a função dos matemáticos é avançar o entendimento matemático das pessoas. Nesse sentido, uma demonstração é como o gol: um aspecto fundamental do esporte, visto como um esforço coletivo.

No fundo, todo verdadeiro avanço matemático — necessário para concluir uma demonstração — pode nos levar a novas formas de pensar e apreender o mundo. Em nível mais elementar, e menos abstrato, isso parece acontecer com o ensino de matemática básica: há evidências de que o entendimento de um resultado é muito superior quando ele é apresentado com sua demonstração.

Olhando em retrospectiva, talvez o papel das demonstrações rigorosas em matemática — e também o nosso, os matemáticos — tenha a ver com a resposta ao garoto flamenguista do Heathrow. Na verdade, eu deveria era ter retrucado: "What (and how) do you think? – o que (e como) você acha?".

*

Edgard Pimentel é pesquisador do Centro de Matemática da Universidade de Coimbra e professor da PUC-Rio.

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