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Ciência e turismo lado a lado na Chapada Diamantina

Propostas de criação de geoparques na região projetam a comunidade como protagonista

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Quem for à Chapada Diamantina, na Bahia, e perguntar qual de suas incontáveis cachoeiras é a mais bonita, ouvirá muitas vezes a mesma resposta: Buracão. Parte do deslumbre se deve à experiência de chegar lá. São 3 km de trilha, e os 100 metros finais são percorridos a nado, entre cânions suntuosos. Ao fazer a curva do rio, o visitante se depara com os 85 metros de queda d’água. Poucos tinham esse privilégio até o fim dos anos 1990, quando a comunidade local lutou pela abertura da cachoeira a visitantes. Agora, o engajamento da sociedade na atividade turística promete se intensificar, graças a novas propostas de geoparques na região.

Dos sete projetos de criação de geoparques mundiais da Unesco na Bahia (o estado com mais propostas no país) sugeridos pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM), quatro ficam na Chapada Diamantina. Não é por acaso: com rochas que contam uma história de bilhões de anos, 30 mil vezes mais antiga que a da espécie humana, e trazem evidências de que lá já existiram desertos, geleiras, vulcões e mares, a Chapada é o paraíso da geologia no Brasil. Ali foram encontradas as rochas mais antigas da América do Sul, com 3,65 bilhões de anos, mostrou a edição de maio de 2022 da revista Pesquisa Fapesp.

Arte ilustra uma roda de pessoas e animais típicos da Chapada Diamantina
Ilustração: Lívia Serri Francoio - Instituto Serrapilheira

Geoparques são projetos não apenas científicos ou turísticos, mas também sociais. São descritos como botton-up, ou seja, criados pela base – a comunidade –, com apoio do poder público. A Unesco os define como "áreas geográficas unificadas, onde sítios e paisagens de relevância geológica internacional são administrados com base em um conceito holístico de proteção, educação e desenvolvimento sustentável". A ideia é promover a conservação por meio do empoderamento da população local e da redução das desigualdades.

Hoje existem 177 geoparques mundiais da Unesco em 46 países. Três estão no Brasil: o do Araripe, no Ceará; o do Seridó, no Rio Grande do Norte; e o Caminhos dos Cânions do Sul, entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Os dois últimos ganharam o título em abril de 2022.

Das quatro propostas de geoparques na Chapada Diamantina (destrinchadas em um artigo publicado em abril na revista "Geoheritage"), a mais avançada é a da Serra do Sincorá, que já conta com uma entidade sem fins lucrativos focada na sua implementação, a Associação Geoparque Serra do Sincorá – AGS. O projeto prevê uma área de 6.313 km² que engloba os municípios de Andaraí, Lençóis, Mucugê e Palmeiras, e uma população de 44 mil habitantes. Renato Azevedo, coordenador geral do projeto da AGS, afirma que a expectativa é submeter a candidatura à Unesco em 2024 e obter a homologação em 2025. "Estamos com 48% do trabalho implantado", diz.

Se nos geoparques a ciência anda de mãos dadas com o turismo, na Chapada Diamantina isso já acontece naturalmente. É comum ouvir dos guias que "a Chapada era fundo de mar" ao explicar curiosidades locais, como os típicos arenitos rosados. E é verdade. A região do Projeto Geoparque Serra do Sincorá, por exemplo, foi um grande mar em pelo menos dois momentos distintos. O último episódio marinho, há 600 milhões de anos, foi reciclado por processos de formação de montanhas oriundas da colisão de placas tectônicas.

"Na Chapada há cânions de cachoeiras em que é possível observar seções completas de fundo de mar, com sedimentos finos no topo e areia na base", explica a geóloga e professora da USP Adriana Alves. As rochas sedimentares da região sofreram baixo metamorfismo, ou seja, foram pouco alteradas e conservam estruturas da época de sua deposição e soterramento. Soma-se a essa geologia preservada uma história rica, marcada sobretudo pelo garimpo de diamantes que se desenvolveu no século 19 e que, como pode-se supor, inspirou o nome do lugar (a exploração mecanizada, no entanto, é proibida desde 1996).

"Em um geoparque, placas explicam a origem das coisas, contextualizando a evolução da Terra e da vida", completa Alves. A experiência, portanto, é mais do que meramente turística. Ainda assim, a expectativa é que o Geoparque Serra do Sincorá dobre o turismo na região. Por isso, a preocupação com o impacto ambiental deve ser uma das prioridades em projetos como esse.

"O visitante atraído pelos geoparques está interessado não só em banhos de cachoeira, mas na história evolutiva daquele pedaço do planeta e em ter experiências comunitárias diferentes. É alguém que reconhece a necessidade de preservar o ambiente e mitigar seus impactos", destaca Renato Azevedo. "Mas geoparques vêm acompanhados de desenvolvimento socioeconômico das comunidades, o que consequentemente provoca algum impacto ao meio ambiente."

Vale dizer que nem só de rochas se faz a Chapada – sua biodiversidade também é vasta. Tanto que, em 1985, foi criado o Parque Nacional da Chapada da Diamantina, uma unidade de conservação gerida pelo Instituto Chico Mendes – ICMBio para proteger 152 mil hectares de nascentes, cachoeiras, cavernas, montanhas, vales e espécies ameaçadas como a onça-pintada, onça-parda e tatu-canastra.

Mas o que significa, de fato, empoderar a população local por meio da atividade turística? Embora a tendência na Chapada Diamantina seja engajar a sociedade no turismo de forma institucionalizada, essa é uma característica inerente a seus habitantes. A conquista popular que "libertou" a cachoeira do Buracão, por exemplo, foi acontecendo organicamente.

Cachoeira do Buracão, na Chapada Diamantina
Cachoeira do Buracão, na Chapada Diamantina - Instituto Serrapilheira

A "cachoeira mais bonita da Chapada" fica no município de Ibicoara – fora do território do Projeto Geoparque Serra do Sincorá –, com cerca de 20 mil habitantes. Até por volta de 1996, seus visitantes se limitavam a caçadores que percorriam a área atrás de tatus e veados (o que, aliás, é crime ambiental). Nessa época, a trilha era outra, bem mais complicada – levava-se cerca de um dia para chegar lá. Tudo mudou quando o prefeito daquele tempo, Arnaldo Silva Pires, viu uma foto do lugar.

"Tinha três pessoas que andavam muito por ali: o Janu [Janildes Silva Xavier, hoje diretor de Meio Ambiente de Ibicoara], o Laelson [Alves da Silva, já falecido] e o Cassio [Antonio Batista, hoje subsecretário de Meio Ambiente e Turismo], que era fotógrafo", lembra Pires. Quando eles me mostraram a foto que bateram do Buracão, falei: ‘Isso não pode ficar assim. Vamos desenvolver o turismo na cachoeira’."

A partir daí começou uma força-tarefa capitaneada por Janu para abrir uma estrada de 8 km até o início da trilha. O trabalho, feito por roçada manual, durou cerca de um ano. "Os servidores abriram o mato com facão e machado. Anos depois é que vieram as máquinas", relata Janu, hoje com 65 anos, que também é guia turístico.

Ao mesmo tempo, Janu contou com apoio da comunidade na missão de encontrar um trajeto mais fácil do que a trilha dos caçadores para se chegar à cachoeira. Foram algumas tentativas até conquistar o percurso atual de 3 km, que margeia o rio Espalhado, passa por outras três cachoeiras achadas pelo caminho e por um mirante num penhasco de onde é possível se impressionar com a vista do Buracão por cima. "Depois que descobrimos o lugar, todo mundo acabou ajudando", diz o ex-prefeito.

Mas havia um problema. A cachoeira ficava dentro de uma propriedade privada que pertencia a uma revendedora de veículos. A solução para evitar que o dono explorasse o turismo por conta própria, conta Pires, foi ir à Justiça com uma ação de desapropriação para criar um parque municipal. Os moradores da região fizeram um abaixo-assinado. O proprietário não respondeu, e o processo correu à revelia. Em 2005, foi enfim criado por decreto o Parque Natural Municipal do Espalhado, com uma área de 611 hectares de terreno desapropriado.

Um dos moradores que ajudou na abertura da trilha foi Sebastião Reis, de 52 anos, que há 26 trabalha como guia no Buracão. Ele foi um dos primeiros a conhecer a cachoeira – esteve por lá em 1989 junto a caçadores, em uma expedição de três dias. Calcula que já fez a famosa curva do rio para ficar diante da queda d’água mais de 6 mil vezes. "Não canso de vê-la. Sempre me emociono, é como se estivesse lá pela primeira vez."

Só é possível ir até o Buracão acompanhado de um guia local de Ibicoara. Também é obrigatório usar colete salva-vidas para mergulhar em suas águas escuras que são marca da Chapada Diamantina. Fruto da decomposição de folhas, galhos e raízes, elas dão ao visitante a sensação de tomar banho em uma infusão de ervas gigante. Um privilégio vivido, hoje, por cerca de 30 mil turistas por ano, graças aos ibicoarenses.

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Clarice Cudischevitch é coordenadora do blog Ciência Fundamental e gestora de comunicação no Instituto Serrapilheira.

Esta matéria foi escrita para a campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Em julho, os textos do blog Ciência Fundamental vão refletir sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil e a sua relação com outros temas de interesse público. O de hoje é sobre ciência e turismo.

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