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Por que criar um sistema único de vigilância em saúde

Integração entre saúde humana, animal e ambiental pode evitar novas pandemias

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Pedro Lira

Talvez você se lembre de um surto de febre amarela que atingiu humanos e macacos no sudeste do país entre 2017 e 2019. Este é um caso que ilustra bem um conceito antigo, mas que tem ganhado força após a pandemia da covid-19: saúde única, termo cunhado pela Organização Mundial da Saúde em 2008. Na época do surto, a morte de primatas e de pessoas em decorrência do vírus levou a ações integradas entre especialistas em saúde animal, ambiental e humana.

A integração dessas três frentes é uma reivindicação antiga de quem atua na linha de vigilância em saúde. A ideia de que deva existir um único sistema que abrace questões humanas, animais e ambientais se sustenta na premissa de que elas são indissociáveis, e a saúde humana estará comprometida se a ambiental e a animal não estiverem em concordância.

Arte ilustra elementos relacionados à biodiversidade, que remetem a sementes, e frascos cheios ao fundo
Ilustração: Joana Lavôr - Instituto Serrapilheira

O argumento é sólido. Um estudo, publicado em julho de 2022 na revista "Science Advances", mostra que o desmatamento, o contato com animais silvestres e a precariedade do sistema de saúde aumentam o risco de surto de zoonoses – doenças transmitidas de animais para humanos. Os surtos de malária e leishmaniose, por exemplo, estão diretamente relacionados ao desmatamento.

No ano em que a Amazônia Legal, área do bioma que engloba nove estados brasileiros, teve recorde de alerta de desmate – foram 3.750 km² só no primeiro semestre de 2022, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) – , é de se esperar que especialistas em saúde pública estejam a postos. Cecilia Andreazzi, ecóloga e pesquisadora na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, explica que um dos grandes desafios no monitoramento de patógenos é a coleta de dados. "Apesar de ter muita pesquisa no Brasil e profissionais capacitados, nosso território é enorme e existe uma lacuna de conhecimento sobre nossa biodiversidade em geral, não só de patógenos", diz a cientista, que também é uma das autoras do artigo recém-publicado.

O trabalho da ecóloga é sintetizar dados sobre o que se sabe a respeito da ocorrência desses patógenos associados à vida silvestre. A partir de um mapeamento, sua equipe construiu uma base de dados que reúne informações como a especificidade de patógenos associados aos diferentes mamíferos/ hospedeiros, bem como a localização em que se deu o evento. Ou seja: que tipo de patógeno está associado a que tipo de hospedeiro e em qual região do Brasil. "Isso nos ajuda a fazer previsões, conhecer as áreas que precisam de atenção especial e aquelas prioritárias para monitoramento mais específico, por exemplo", explica.

As proporções continentais do país, que é um hotspot de biodiversidade, e os baixos recursos aplicados em monitoramento geram os chamados vazios amostrais. Isso é um problema quando estamos falando de modelos preditivos. Segundo Andreazzi, o resultado dos modelos são tão bons quanto os dados utilizados para alimentá-los. Se falta informação, esse modelo não será tão apurado. "Estamos sempre olhando para trás e não para frente. Ainda temos pouca informação nessa parte da vigilância silvestre, preditiva. Atualmente a área está muito focada nas moléstias que já conhecemos, como dengue, febre amarela e doença de Chagas", explica.

A especialista afirma ainda que é preciso prestar mais atenção à saúde ambiental e animal e, principalmente, integrá-las à humana. "Os ministérios e secretarias dedicados a cada uma delas são dissociados, então as políticas públicas são um reflexo disso. Não existe um órgão interministerial que pense essa integração", explica. Ou seja, enquanto a vigilância agropecuária investiga um surto em animais importantes na produção agrícola, ela não se comunica com o Ministério do Meio Ambiente para pensar a conservação de espécies ameaçadas, que podem ter relação com o surto dessa doença.

O biólogo Hugo Fernandes, professor da Universidade Estadual do Ceará que também assina o estudo na "Science Advances", concorda que precisamos melhorar o monitoramento dos patógenos que estão circulando no meio silvestre. "Mostramos no artigo potenciais ameaças e vias de infecção e contágio. Mas precisamos saber, para além da modelagem estatística, o que de fato está acontecendo no território brasileiro", comenta.

O pesquisador, que trabalha com conservação de fauna, investiga o impacto humano especificamente relacionado à caça. Ele acredita que a participação de uma equipe como a sua em um estudo epidemiológico representa bem o conceito de saúde única. "Atuando na divulgação científica da covid-19, enxerguei a relação entre caça e o cenário atual de zoonoses. Isso fez a ponte entre meu grupo e o da Fiocruz", relembra. A partir do artigo publicado, os cientistas das duas áreas estabeleceram um grupo de estudos que investiga relações entre zoonoses e desmatamento e caça, financiado pelo Centro de Síntese em Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos do CNPq.

Em relação à covid-19, Fernandes e Andreazzi afirmam que a pandemia foi um divisor de águas para a discussão sobre a emergência de novas doenças. "Isso [até então] era um problema distante, pois não sabíamos que impacto uma pandemia teria na sociedade", diz a ecóloga.

Ainda assim, o Brasil não está mal no aspecto da vigilância. "O Sistema Único de Saúde (SUS) é bem estruturado e articulado e tem uma presença ampla no território nacional", defende Andreazzi. Fernandes concorda: "Se existe um país que tem estrutura e histórico para mostrar ao mundo uma posição de liderança com relação à saúde única, é o Brasil. Basta vontade política."

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Pedro Lira é jornalista no Instituto Serrapilheira.

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