Nunca pratiquei tênis. Não sei como funcionam as regras do jogo. Jamais assisti a uma partida. Mas em 1997, quando Gustavo Kuerten venceu seu primeiro Roland Garros, comprei uma raquete. E apesar de nunca tê-la usado, ela servia a um propósito curioso: recordava-me da magia em torno do herói que tinha me influenciado. O efeito-herói e a capacidade de inspirar estão presentes nas mais diversas atividades humanas. E é evidente que está na ciência.
Um exemplo que me impressiona é protagonizado pelo físico paquistanês agraciado com o prêmio Nobel de 1979, Abdus Salam. Personalidade de um legado multidimensional, Salam nos ilumina em várias direções. Para começar, na década de 50 do século passado, quando começou a dar aulas no Imperial College London, juntamente com Paul Matthews deu o pontapé inicial para a criação do Departamento de Física Teórica daquela instituição.
Ele foi ainda uma das principais forças por trás da fundação do Centro Internacional de Física Teórica (ICTP), localizado na cidade italiana de Trieste. E se o assunto é inspirar, o ICTP é parada obrigatória. Desenhado como um espaço científico neutro (em que, por exemplo, os muitos lados das cortinas de ferro podiam se encontrar), o centro mantém desde seus anos iniciais programas capazes de prospectar e seduzir jovens talentosos das mais diversas partes do mundo.
Com ênfase em cientistas provenientes de países cientificamente menos desenvolvidos, esses programas atraem pesquisadores e oferecem a oportunidade de interação com expoentes internacionais das diversas áreas cultivadas pelo centro. Aqui a inspiração se multiplica. Em primeiro lugar, a figura de Salam encarna o modelo de que a ciência é um patrimônio mundial que deve estar ao alcance de todos. Depois, aqueles que chegam ao centro têm a chance de se deixar contaminar pela atmosfera local, seja pelos novos contatos, seja pela vista do mar Adriático. E, talvez, o efeito mais importante seja que, uma vez de volta a seu país, esses cientistas são os que mais influência exercem sobre os jovens cientistas, divulgando universos muitas vezes desconhecidos e mostrando a novos talentos que é possível ter sucesso.
Uma curiosidade: a biblioteca Marie Curie do ICTP – nomeada em homenagem à cientista polonesa Marie Salomea Skłodowska-Curie – reúne uma série de diplomas e outros pertences de Abdus Salam, incluindo seus trabalhos. A visita a esse espaço é inspiradora, e é difícil sair de lá indiferente aos compromissos da carreira científica em algumas partes do mundo.
O efeito-herói associado a uma personalidade como Salam opera em altíssima rotação. Mas depende do tempo da ciência e de muitos fatores que não são deliberados. Por outro lado, existe a inspiração científica em menor escala mas com potencial transformador muito importante. São os chamados modelos ou exemplos a seguir. Aqui, falamos das diversas pessoas brilhantes cuja mera existência entusiasma o talento do futuro.
Mas como o assunto é ciência, é preciso haver um problema. E a inspiração tem uma componente bastante perversa. A experiência transcendental de visitar a memorabilia de Salam pressupõe oportunidade. A admiração de encontrar os arquivos de Salam ao esquentar o almoço em uma copa do Imperial College pressupõe acesso a South Kensington. A poesia da inspiração não rima igual pra todo mundo. E, aqui, quem pensa a ciência precisa de engenho e arte.
Se o talento é aleatório e está em qualquer parte esperando ser descoberto, ele pode estar com fome. Pode não ter sido alfabetizado. Pode estar entre a população encarcerada. Pode, sobretudo, não acreditar que é possível se desenvolver. Inspirar é preciso, e fomentar os heróis é natural. Mas igualmente importante, e até anterior, é garantir o acesso à inspiração. Um vale-sonho universal.
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Edgard Pimentel é pesquisador do Centro de Matemática da Universidade de Coimbra e professor da PUC-Rio.
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