Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

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Precisamos garantir o acesso à inspiração

Efeito-herói é fundamental para entusiasmar os futuros talentos da ciência

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Edgard Pimentel

Nunca pratiquei tênis. Não sei como funcionam as regras do jogo. Jamais assisti a uma partida. Mas em 1997, quando Gustavo Kuerten venceu seu primeiro Roland Garros, comprei uma raquete. E apesar de nunca tê-la usado, ela servia a um propósito curioso: recordava-me da magia em torno do herói que tinha me influenciado. O efeito-herói e a capacidade de inspirar estão presentes nas mais diversas atividades humanas. E é evidente que está na ciência.

Um exemplo que me impressiona é protagonizado pelo físico paquistanês agraciado com o prêmio Nobel de 1979, Abdus Salam. Personalidade de um legado multidimensional, Salam nos ilumina em várias direções. Para começar, na década de 50 do século passado, quando começou a dar aulas no Imperial College London, juntamente com Paul Matthews deu o pontapé inicial para a criação do Departamento de Física Teórica daquela instituição.

Arte ilustra a cientista Marie Curie com um vestido preto longo e coque de cabelo jogando tênis; em uma mão ela segura uma raquete com a qual rebate uma bola, na oura ela segura um frasco de laboratório contendo um líquido que solta bolhas
Ilustração: Valentina Fraiz - Instituto Serrapilheira

Ele foi ainda uma das principais forças por trás da fundação do Centro Internacional de Física Teórica (ICTP), localizado na cidade italiana de Trieste. E se o assunto é inspirar, o ICTP é parada obrigatória. Desenhado como um espaço científico neutro (em que, por exemplo, os muitos lados das cortinas de ferro podiam se encontrar), o centro mantém desde seus anos iniciais programas capazes de prospectar e seduzir jovens talentosos das mais diversas partes do mundo.

Com ênfase em cientistas provenientes de países cientificamente menos desenvolvidos, esses programas atraem pesquisadores e oferecem a oportunidade de interação com expoentes internacionais das diversas áreas cultivadas pelo centro. Aqui a inspiração se multiplica. Em primeiro lugar, a figura de Salam encarna o modelo de que a ciência é um patrimônio mundial que deve estar ao alcance de todos. Depois, aqueles que chegam ao centro têm a chance de se deixar contaminar pela atmosfera local, seja pelos novos contatos, seja pela vista do mar Adriático. E, talvez, o efeito mais importante seja que, uma vez de volta a seu país, esses cientistas são os que mais influência exercem sobre os jovens cientistas, divulgando universos muitas vezes desconhecidos e mostrando a novos talentos que é possível ter sucesso.

Uma curiosidade: a biblioteca Marie Curie do ICTP – nomeada em homenagem à cientista polonesa Marie Salomea Skłodowska-Curie – reúne uma série de diplomas e outros pertences de Abdus Salam, incluindo seus trabalhos. A visita a esse espaço é inspiradora, e é difícil sair de lá indiferente aos compromissos da carreira científica em algumas partes do mundo.

O efeito-herói associado a uma personalidade como Salam opera em altíssima rotação. Mas depende do tempo da ciência e de muitos fatores que não são deliberados. Por outro lado, existe a inspiração científica em menor escala mas com potencial transformador muito importante. São os chamados modelos ou exemplos a seguir. Aqui, falamos das diversas pessoas brilhantes cuja mera existência entusiasma o talento do futuro.

Mas como o assunto é ciência, é preciso haver um problema. E a inspiração tem uma componente bastante perversa. A experiência transcendental de visitar a memorabilia de Salam pressupõe oportunidade. A admiração de encontrar os arquivos de Salam ao esquentar o almoço em uma copa do Imperial College pressupõe acesso a South Kensington. A poesia da inspiração não rima igual pra todo mundo. E, aqui, quem pensa a ciência precisa de engenho e arte.

Se o talento é aleatório e está em qualquer parte esperando ser descoberto, ele pode estar com fome. Pode não ter sido alfabetizado. Pode estar entre a população encarcerada. Pode, sobretudo, não acreditar que é possível se desenvolver. Inspirar é preciso, e fomentar os heróis é natural. Mas igualmente importante, e até anterior, é garantir o acesso à inspiração. Um vale-sonho universal.

*

Edgard Pimentel é pesquisador do Centro de Matemática da Universidade de Coimbra e professor da PUC-Rio.

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