Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

Ciência Fundamental - Ciência Fundamental
Ciência Fundamental
Descrição de chapéu
jornalismo mídia

É preciso pensar sobre as relações de poder na ciência e jornalismo

As duas áreas estão em crise - mas não dá para obter resultados diferentes tentando o mesmo de sempre

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Meghie Rodrigues

Gostaria de pedir licença às editoras do blog para, em vez de falar de ciência, abordar o jornalismo científico — que é, em si, uma área vital para a produção científica e para manter seus processos sob escrutínio público. Espero que os cientistas lendo esta coluna concordem comigo.

Para quem conhece e vive o jornalismo por dentro, e sabe que o ofício nunca foi reconhecido pela diversidade, a mistura de cores e origens presente na última Conferência Mundial de Jornalismo Científico — WCSJ, no acrônimo em inglês — foi uma grata surpresa. Entre 27 e 31 de março, Medellín, na Colômbia, recebeu a 12ª edição do evento, a segunda em uma cidade do Sul global — a primeira foi em 2011, em Doha, no Catar.

Arte ilustra pessoas e plantas dispersas por um fundo preto. Na parte inferior da imagem, há pés de cabeça para baixo.
Ilustração: Lívia Serri Francoio - Instituto Serrapilheira

Se uma segunda conferência desse porte (a mais importante da área) só aconteceu no Sul global depois de dez anos da anterior, e pela primeira vez na América Latina, isso diz algo sobre o jornalismo científico mundial. E também é um prenúncio de que os ventos, que por tanto tempo sopraram em direção ao Norte global, parecem estar mudando.

A esmagadora participação de jornalistas da região — de mexicanos e peruanos a argentinos, chilenos, brasileiros, bolivianos e, claro, colombianos — e também de colegas sul-asiáticos e africanos comprovou essa mudança de rumo, detectada em suas diversas cores e trajetórias.

Explico meu espanto: segundo levantamento do Reuters Institute for the Study of Journalism, em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, o jornalismo nas grandes redações é majoritariamente branco e de classe média. A demografia não difere muito daquela dos cientistas: tanto na ciência como no jornalismo, o desequilíbrio de gênero em posições de liderança ainda grita. Bem alto.

Outro indício de que os ventos estão mudando foi o conteúdo das discussões. Esteve em pauta a desigualdade de acesso ao exercício da ciência e do jornalismo científico, despontando como uma das principais barreiras à maior diversidade em ambos os campos o chamado colonialismo científico — a reprodução no mundo da ciência da lógica de dominação de países ocidentais sobre os demais. Também ocupou a pauta o debate sobre equidade de gênero na pesquisa científica e a necessidade de incluir vozes e saberes tradicionais na formulação de políticas científicas, em ações de preservação da biodiversidade — e no fazer diário da própria ciência.

Podemos coexistir sem subjugar?

A bióloga Brigitte Baptiste, reitora da Universidade EAN em Bogotá, provocou: "Podemos, como humanos, gerar um entendimento compartilhado da biodiversidade global sem impor uma narrativa?" Será que, caso fôssemos nós, latino-americanos e povos do Sul global, a colonizar a Europa, essa forma de se relacionar com o mundo também seria colonialismo? A imposição de modos de vida e conhecer seria a única possibilidade de coexistência?

A pergunta faz sentido. Tudo que conhecemos, especialmente no Sul global, dada nossa longa história de colonização e expropriação, se origina de uma criação de saberes que é, antes de tudo, extremamente violenta, posto que impositiva. A ciência ocidental de raízes europeias se esforçou, ao longo de séculos, em suplantar conhecimentos locais e tradicionais dos países invadidos por europeus. Sob fogo cerrado, a ciência é alvo de desconfiança em muitas frentes porque representa, como Baptiste bem lembrou, "uma ameaça à diversidade".

Por muito tempo, a ciência ocidental excluiu outras formas de conhecer o mundo, e foi tida como a última palavra para encerrar toda e qualquer discussão. Era como se fosse uma solução quase mágica de todo e qualquer problema, desenvolvida por seres iluminados por uma inteligência fora do comum, diferentes de nós, os outros mortais.

Sentindo-se alijada do processo de criação do conhecimento científico, muita gente se voltou para teorias da conspiração, falsas curas e outras ideias aparentemente sem sentido. A avalanche de anticientificismo que inunda as redes sociais, instrumentalizada por campanhas orquestradas de desinformação, é o desaguar de um processo que levou anos para ser construído. Teorias mirabolantes e a rejeição da ciência não são uma novidade, mas é agora que elas batem à porta de pesquisadores — e, por consequência, também dos jornalistas — de modo muito mais audível. Afinal, durante muito tempo contribuímos para a visão da ciência ocidental como uma espécie de caixa-preta hermética e impossível de desvendar.

Brigitte Baptiste vai além: a desconfiança a respeito do jornalismo e da ciência também tem raízes na crença de que tanto um quanto a outra são beneficiados por laços espúrios com grandes indústrias e figuras no poder, ao invés de se preocupar com o bem comum dos cidadãos. Cientistas e jornalistas precisariam fazer uma autocrítica urgente. Para isso, podem usar ferramentas de áreas como estudos de gênero, filosofia e sociologia, que já têm o costume de questionar suas certezas. E, sobretudo — e em especial no momento em que vivemos —, o conhecimento indígena e tradicional.

Pensar as relações de poder e complexificar para sobreviver

Autores como Ailton Krenak vêm dizendo há muito que, se a ciência ocidental foi usada como instrumento para subjugar e colonizar, é preciso descolonizá-la, ou seja, enfrentar essas relações de poder, a fim de inventar novas formas de habitar o mundo. Porque, para chegarmos ao estado de crise atual — social, ecológico, civilizacional —, é evidente que o caminho que estamos seguindo não está funcionando.

A ciência como a conhecemos não precisa ser uma oposição ao conhecimento tradicional que acompanha a humanidade há milênios. Há inúmeras possibilidades de criação conjunta que já começam a despontar em muitos cantos do planeta, especialmente no Sul global. O jornalismo científico pode refletir essa revolução complexificando sua narrativa. Se antes a ciência era narrada como uma caixa-preta quase mágica, já passou da hora de o jornalismo abrir esta caixa e convidar as pessoas a olhar dentro dela.

E isso não será feito por gente de classe média olhando para o mundo a partir da sua branquitude e dos privilégios que lhes garantiram uma mesa em alguma redação. Precisa ser feito por pessoas de classes sociais e origens diversas a fim de que os leitores — diversos, eles também —, se sintam confortáveis o suficiente para confiar naqueles e naquelas que os chamam a olhar dentro da caixa-preta. É preciso, como bem lembrou Baptiste, "evitar a simplicidade" e abraçar a complexidade e a nova linguagem que o momento exige. Dá trabalho, mas é preciso tentar. Para sobreviver, tanto a ciência quanto o jornalismo que fala dela precisam se descolonizar.

*

Meghie Rodrigues é jornalista de ciência.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, de apoio à ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.