Cozinha Bruta

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Atenção, patrulha da ostentação: tomar sorvete não é luxo

Tribunal das redes compara mimo gelado de pai para filha com privilégio da elite escravocrata

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Atibaia

Deu no Universo paralelo do Twitter: Catharina Lima, residente em Florianópolis, postou a foto de cinco potes de sorvete que o pai lhe dera. Avelã, leite, chocolate, doce de leite e pistache, todos da marca Bacio di Latte.

"Eu: preciso comer coisas geladas por x dias. Meu pai: [foto dos sorvetes]", escreveu.

Cinco potes de sorvete da Bacio di Latte
Foto de sorvetes que a Catharina Lima ganhou do pai e postou no Twitter; outros tuiteiros a acusaram de ostentação - Reprodução

Aparentemente Catharina extraiu um dente ou fez cirurgia no rosto. Sei lá. Não importa, tanto faz, pai nenhum precisa de motivo para demonstrar carinho pela filha.

Ainda assim, a moça foi massacrada como se o gesto paterno fosse um ato de ostentação de riqueza. O comentário mais absurdo dizia o seguinte:

"Aqui percebemos a riqueza implícita na sociedade burguesa. Um pai que desembolsa 300 reais em SORVETE é provavelmente quem açoitou meu bisavô no passado."

Sério, aonde chegamos? Releve o fato de que o pai deve ser jovem demais para se enquadrar na acusação. O que tem uma coisa a ver com a outra? Sorvete com escravidão? Sobremesa com opressão?

A discussão conversa com meus dois últimos posts a respeito de um ovo de Páscoa vendido a R$ 5.950 por uma confeiteira de São Paulo. Aí eu soei a corneta da ostentação e da falta de sensibilidade com a miséria. O ovo e os sorvetes são coisas bem diferentes –também no campo simbólico.

O ovo de quase R$ 6.000 se enquadra numa categoria de produtos desenhados para o mercado de luxo.

Interessa a vendedor e a comprador que o preço do artigo seja exorbitante: quanto menos unidades em circulação, maior a exclusividade. Ela é o valor abstrato do objeto; o valor concreto, do chocolate em si, também está acima da média. Mas ele importa bem pouco para as partes envolvidas na transação.

Já os sorvetes do pai da Catharina são feitos em grande quantidade para uma rede de lojas presentes em 10 estados e no Distrito Federal, mais os potes que vão para o varejo. Disputa mercado com o Ben & Jerry’s, da Univeler, na mesma faixa de preço. São marcas mais caras do que o sorvete de pote quadrado cheio de gordura vegetal e tranqueiras. Definitivamente não são artigos exclusivos.

Aliás, o pai da Catharina teria pagado R$ 40 no pote de sorvete se o tivesse comprado no supermercado Pão de Açúcar. Isso totaliza R$ 200 (não R$ 300), sem as promoções aplicáveis.

Então para a patrulha tuiteira, R$ 200 num presente para a filha é um absurdo. Vão catar coquinho.

Ontem mesmo, fui com o meu filho –de 9 anos, mas já come como adulto– num restaurante por quilo, sem sofisticação alguma, no centro de Atibaia (SP). Cada um se serviu de um prato. Ele tomou um suco de maracujá e aceitou a sobremesa (cortesia!), um creme de tapioca.

A conta deu R$ 101,37, mais de metade do valor dos sorvetes. Desculpem a ostentação, mas precisávamos almoçar.

Vamos propor outra situação, desta vez hipotética.

Suponha que eu tivesse pai vivo e fosse um jovem voltando, vamos dizer, de uma temporada de estudos em outra cidade. Meu pai quer dar um churrasco para me receber. Só a família mais chegada.

Uma picanha –pô, é ocasião especial– de 1,1 quilo custa R$ 85,46 no mesmo mercado dos sorvetes a R$ 40. Nem é uma picanha das melhores, para não exagerar na ostentação.

Um quilo de linguiça toscana toscona, R$ 26,90. Coraçãozinho, pacote de 620 gramas, R$ 18,59. Dois pacotes de queijo de coalho, R$ 48. Farofa pronta, R$ 5,79. Carvão –carvão é importante–, R$ 17,99 um pacote de 2,5 kg.

O vinagrete a gente faz com o que tem em casa. Mas calma. A conta já deu R$ 202,73. Estourou os R$ 200 sem uma mísera cerveja.

Duvido que alguém considere luxuoso o churrasco descrito acima. Tomar sorvete também não é.

Sorvete não é luxo. Comida não é luxo. Não podemos normalizar a fome e os preços absurdos, mas não dá para embarcar em determinadas patrulhas.

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