Cozinha Bruta

Comida de verdade, receitas e papo sobre gastronomia com humor (bom e mau)

A feijoada em vias de extinção

Nos restaurantes da orla de Salvador, é difícil encontrar a feijoada baiana tradicional, feita com feijão carioca

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São Paulo

Estávamos, eu e o filhote, no mercado do Rio Vermelho, em Salvador. De certa forma, é uma atração turística –muito mais arrumadinho do que as feiras dos bairros populares, mas mil vezes menos artificial do que o Mercado Modelo, aos pés do elevador Lacerda. Pelo sotaque, percebi que a maioria dos frequentadores era de baianos. Baianos com grana e majoritariamente brancos.

O Ceasinha, como o mercado foi apelidado, tem lojas com uma infinidade de comidas típicas: camarão defumado, farinhas, azeite de dendê, frutas da mata e do sertão, frutos do mar, miúdos de porco para o sarapatel, beiju de tapioca.

Feijoada de feijão carioca acompanhada de farofa e vinagrete
Feijoada baiana, feita com feijão carioca, do restaurante Rainha da Feijoada, em Lauro de Freitas (município vizinho a Salvador), que também serve o prato com feijão preto - Reprodução/Instagram @rainhadafeijoadaoficial

Uma ala anexa é reservada para bares e restaurantes. Escolhemos, para almoçar, um bar chamado Catiguria, por dois motivos: estava concorrido e tinha um "aquário" climatizado (sei que ar-condicionado é um péssimo critério de escolha quando se busca autenticidade, mas eu buscava conforto e me dei bem com a comida).

Era sábado, e o cardápio anunciava que, aos fins de semana, a casa oferece feijoada. Pela descrição do prato, era igual à feijoada que a gente come em São Paulo. Perguntei ao garçom: "Vocês não servem a feijoada baiana?".

"Iiiiiih, rapaz, nossa feijoada é feita com feijão comum", respondeu em negativa o atendente, dando a entender que a feijoada baiana é banal demais e que eu não iria gostar dela. Pedi então carne de fumeiro, porco defumado típico do Recôncavo Baiano, acebolada com feijão-tropeiro (em baianês, farofa de feijão-fradinho) e vinagrete.

A feijoada baiana é feita com feijão marrom (chamado de carioca ou mulatinho) e guarda ainda outras peculiaridades. Leva carne de vaca fresca (além do charque) e, não raro, mocotó e bucho de boi.

Nesta visita recente à Bahia, percebi que os locais estão deixando a feijoada típica cair no esquecimento. Consegui comê-la no penúltimo dia de viagem, no Senac no Pelourinho –um painel do receituário tradicional baiano servido em forma de bufê livre no restaurante-escola.

Nos outros cantos em que passei, predominava a feijoada do Sudeste, a feijoada "nacional", de feijão preto, destacada nos cardápios, nas tabuletas e até nos cartazes de rua.

Só passei pela parte turística da cidade? Sim, quase exclusivamente por lá. Mas é nessa parte também que circulam as pessoas ricas e de classe média residentes na cidade –os infames "formadores de opinião", pois não tenhamos a ilusão de que a pauta da gastronomia nasce nas classes C e D.

A gradual troca da feijoada marrom pela preta deve ter começado nos hotéis, para servir estrangeiros e compatriotas de paladar pouco aventureiros. Aí a elite local, que está o tempo todo voando para o Rio e São Paulo, começou a preferir o feijão-preto. A tendência, para a feijoada baiana, é sobreviver sem alarde nas casas, feiras e restaurantes para trabalhadores. Ou, no prazo mais longo, virar peça de museu.

Antes de diagnosticar um caso de opressão cultural pelo poder econômico do Brasil meridional, é interessante notar que um fenômeno idêntico, com sentido oposto, ocorre em São Paulo. O cuscuz paulista, enformado com sardinha e legumes, sai de cena; o cuscuz nordestino, que não se via por aqui até alguns anos atrás, está cada vez mais aparecido.

No século passado, o cuscuz paulista frequentava banquetes e restaurantes lustrosos, vinha num carrinho de entradas cujos preços era feio perguntar –você só descobria, com desgosto, na hora da conta.

Aí um grupo influente nas redes sociais decretou que o cuscuz paulista é feio, é brega é nojento e nem deveria ser chamado de cuscuz. Não adianta nada eu defender o cuscuz paulista no Twitter ou no blog, não dá para segurar essa onda. O cuscuz de sardinha está fadado a sobreviver apenas em nichos –em alguns cantos do litoral de São Paulo e com os guardiães do receituário de outros tempos.

A alimentação, assim como as línguas, é um corpo em constante mutação e altamente permeável a influências externas. Vale muito documentar e preservar hábitos, mas é perda de tempo tentar frear as transformações. O cardápio do dia é o que temos para hoje.

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