Cozinha Bruta

Comida de verdade, receitas e papo sobre gastronomia com humor (bom e mau)

Experiência gastronômica não enche o bucho de ninguém

Vender experiência é coisa de quem não sabe cozinhar feijão: recorrer ao palavreado vazio denota a falta de substância

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São Paulo

Palavras podem transformar, palavras podem ferir, palavras podem encher o saco. Uma palavra que tem me irritado demais nos últimos tempos é "experiência".

Só no último mês, recebi 195 e-mails –sem contar aqueles que apaguei ao ler o assunto– anunciando algum tipo de experiência relacionada a comida ou bebida.

Não é a experiência de um chef que trabalhou sei lá quantos anos em sei lá que restaurante. Tampouco são experimentos gastronômicos, rompantes de criatividade que sempre envolvem algum risco.

Experiência gastronômica de jantar com os olhos vendados num restaurante de São Paulo - Gabriel Cabral/Folhapress

As tais experiências, no delírio do lero-lero marqueteiro, são conjuntos de estímulos sensoriais que fazem um jantar transcender a condição mundana da alimentação.

Como diriam os antigos: vão caçar sapo com bodoque.

As experiências à venda são sempre inesquecíveis –o que não elimina a possibilidade de serem uma furada a se lembrar para o resto da vida. Quase sempre são exclusivas e/ou únicas, apesar de brotarem às centenas por todo canto.

Uma marca de conservas tenta nos convencer que seus novos vinagres chegaram para incrementar a experiência gastronômica. Então imagina o que um bom azeite é capaz de fazer, mano do céu!

Uma bandeira de cartão de crédito martela o bordão de que pode comprar experiências que não têm preço. A fatura, entretanto, insiste em chegar todo mês.

Um café dentro de uma agência de publicidade (que novidade!) aparece com a seguinte presunção: ser "um hub de experiências que facilite a sinergia e a troca entre as pessoas". Hub. Sinergia. Vem, meteoro!

Em tempo: tá cheio de experiência diferenciada na praça.

Os profissionais de comunicação recorrem a essas palavras vazias de significado quando precisam vender um produto ou serviço sem grandes predicados reais.

O dono do restaurante entra na agência de relações públicas e ouve a seguinte pergunta:

– Quais são os diferenciais do seu negócio?

– Fazemos um ótimo estrogonofe, um belo macarrão à bolonhesa, e o pessoal gosta bastante da torta de limão. Ah, servimos feijoada às quartas e sábados.

– Então o release vai ficar assim: "Restaurante do Tonho ressignifica o estrogonofe em experiência diferenciada e imersiva na culinária do afeto".

Não raro inventam uma experiência verdadeira, mas escalafobética, para desviar a atenção da comida no prato. Jantar com os olhos vendados. Almoço na montanha-russa. Café da manhã na jaula do orangotango. Tudo muito instagramável, bien sûr.

Experiência não enche o bucho de ninguém.

Ninguém discute que o negócio de um restaurante ou bar vai além de entregar comida para o cliente engolir –a praga do delivery na pandemia deixou isso claro. Mas essa de vender experiência é coisa de quem não sabe cozinhar feijão.

Voltaremos em breve para confabular sobre a gastronomia-conceito, as explosões de sabores e, claro, as casas 100% instagramáveis. Pela atenção, obrigado.

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