Cozinha Bruta

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Descrição de chapéu Rainha Elizabeth 2ª

Impérios de chá e de sarapatel

Morte da rainha Elizabeth inflama discussão sobre sequelas do colonialismo europeu , inclusive nos hábitos alimentares

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São Paulo

A morte da rainha Elizabeth 2ª inflamou as discussões, que já andavam quentes, sobre os efeitos nefastos do colonialismo europeu no resto do mundo. O Império Britânico foi a maior potência colonial dos tempos modernos. Ruiu justamente no reinado da falecida.

Esse colonialismo, que durou do século 15 ao 20, bagunçou o planeta de uma forma bizarra. Minha geração, na escola, foi doutrinada para achar natural um bando de branquelas com cavalos, bacamartes e crucifixos invadir a terra alheia.

Populações inteiras foram dizimadas e outras tantas acabaram forçadas a longas migrações –caminhando com as próprias pernas ou com o tornozelo acorrentado no porão de um navio infecto. Não dá para desfazer, mas dá para refletir a respeito sem inflar o peito de pombo e declarar orgulho da herança judaico-cristã colonial.

Homem velho de terno segura xícara de chá
Charles 3º, próximo rei da Inglaterra, em cerimônia da celebração do jubileu de platina da sua mãe, Elizabeth 2ª - Jamie Lorriman/AFP (5.jun.2022)

Um dos efeitos mais agudos do colonialismo foi a mudança drástica dos hábitos alimentares de vários povos. Num momento, os italianos não conheciam o tomate nem a batata; no instante seguinte, pow!, nhoque ao sugo.

Os invasores traficavam mercadorias e costumes da metrópole para a colônia, da colônia para a metrópole e de uma colônia para outra. Nesse troca-troca culinário, os súditos da Coroa britânica tiveram um comportamento peculiar: absorveram mais hábitos do que conseguiram –se é que tentaram– impor.

Peculiar, porém 100% condizente com a reputação histórica da comida inglesa. Nos territórios invadidos da Ásia, em especial, os britânicos emplacaram a cerveja, o críquete e o vício em ópio; levaram para casa (e espalharam pelo império) o curry e o chá.

Não dá para conceber a Inglaterra sem chá. Tanto que, no gibi "Asterix Entre os Bretões" (1966), os franceses Goscinny e Uderzo esculhambam a mania dos vizinhos de beber "quente água" (o chá, nativo da China, não havia chegado à Europa na época de Júlio César).

Furdunço culinário muito maior fizeram os portugueses, de quem nos separamos quase amigavelmente há quase exatos 200 anos.

Em seu breve auge colonial, os lusos levaram a mandioca para a África e trouxeram de lá o dendê. Espalharam a pimenta ardida, originária das Américas, pelo mundo todo. Encheram a paisagem brasileira de frutas tropicais exóticas como a manga e a jaca.

Ao contrário dos ingleses, os tugas tiveram sucesso ao emplacar seus hábitos muito longe da foz do Tejo.

Em Goa, ex-colônia portuguesa na Índia, persiste o hábito de comer sarapatel (guisado de miúdos e sangue de porco). Isso num país em que as duas religiões majoritárias –hinduísmo e islamismo– vetam o consumo de carne suína.

Os portugas levaram o pão para a China, onde ele virou bao. No Japão, ensinaram umas friturinhas de vegetais para comer nas têmporas (períodos de jejum observados pelos cristãos no século 17). Assim nasceu o tempurá.

Dá para enxergar um copo meio cheio na situação atual do mundo. Agora, pelo menos, ninguém precisa invadir, pilhar e massacrar para conhecer a comida de outras gentes. O copo meio vazio: ainda o fazem.

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