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Bife de ouro para os ricos, surra de picanha nos pobres

Enquanto pobres são torturados por furto de comida, discute-se que tipo de rico pode ser criticado por jantares de valor obsceno

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São Paulo

A novela do bife de ouro dos jogadores da Seleção está rendendo mais do que o esperado. Na segunda-feira (5), o cartola Ronaldo Nazário argumentou que teria levado os garotos do time ao restaurante de Salt Bae em Doha porque jantar carne folheada a ouro "pode inspirar pessoas".

Sério, Ronaldo. Essa desculpa, como alguém disse no Twitter, está no nível dos pen drives do Eduardo Bolsonaro.

Na terça-feira (6), a Folha publicou um artigo de autoria do chef Ivan Ralston, cujo trabalho como cozinheiro e pesquisador da alimentação admiro muito. O texto se intitula "Jogadores venceram universo que conspira contra e merecem comer o bife que quiserem" .

O turco Salt Bae se exibe, salgando um bife folheado a ouro para os jogadores da Seleção em Doha - Gabriela Biló/Folhapress

O verbo "merecer" vem contaminado com uma visão meritocrática (uma palavra é irmã da outra) das relações de trabalho. Discordo. Concordaria se Ralston dissesse que eles "podem" ou "têm o direito de" processar ouro em folhas no próprio tubo digestivo.

Assim como eles têm o direito de comer, os outros têm o direito de criticar. Então a argumentação do chef se encaminha para uma grave acusação aos críticos do comportamento da delegação canarinho no Qatar. Escreve Ralston em dois trechos distintos do artigo:

"Pediram minha opinião sobre o caso do bife de ouro, assunto que foi abordado por vários jornalistas, sociólogos e historiadores —alguns que admiro, mas com quem nem sempre concordo. Acredito que a revolta é bastante seletiva e faz parte do racismo estrutural da nossa sociedade."

"Voltando à folha de ouro: ela está por aí, nas sobremesas, na carne, nas ovas, no dia a dia da elite que frequenta os restaurantes caros desse país. Curiosamente, nunca vi nenhum desses jornalistas, sociólogos e historiadores falarem mal disso."

Em outro pedaço ainda, ele "sugere fortemente" que essas pessoas estudem a cultura do hip-hop para assimilar a noção de que ostentar, para negros de origem pobre, é sapatear na cara da sociedade racista.

Bom, eu sugiro com ênfase ao chef Ralston que pesquise fortemente sobre o que vai escrever antes de cravar um definitivo "nunca" num artigo de opinião. Não sei se ele leu o que eu escrevi a respeito, nem se a crítica é dirigida pessoalmente a mim –muita gente desceu a lenha no jantar dos garotos dourados da Copa.

Eu fui uma dessas pessoas e publiquei, na sexta-feira (2), uma coluna sob o título "O churrasco folheado a ouro dos palhaços da seleção". Sinto-me no direito de me defender da acusação de propagar ideias racistas –ainda que estruturais.

Ralston certamente não leu outros dois textos meus a respeito do ouro comestível, ambos publicados aqui na Folha. "Ouro comestível é o cúmulo do jeca" (8/2/20) e "Há algo de podre no churrasco brasileiro" (17/9/21). O último, com menção ao bife de ouro e nenhuma a jogadores de futebol. Em ambos, uma crítica aos hábitos da elite, de que Ralston nunca viu jornalistas falarem mal. Pô, encher o saco dos engomadinhos é a minha especialidade!

Só mais uma sobre a carne de ouro. Ralston e outros que escrevem sobre o tal "bife de R$ 9.000" digitam em modo automático, apesar de estarem a um clique de distância do menu digital do restaurante Nusr-et em Doha.

Ali, o ottoman steak, um enorme pedaço de contrafilé com osso, folheado a ouro custa 2.310 riais –algo como R$ 3.300, pouco mais do que um terço do preço gritado por aí. E, que fique registrado, as craques Victoria Damasceno e Gabriela Biló publicaram o valor correto, que obviamente não é baixo.

Por fim, acho realmente interessante que se discuta o descalabro nababesco dos aristocratas e dos novos-ricos. Pena que todo esse barulho ofusque questões muito mais urgentes.

Apenas para ficar na carne, ainda está fraca a repercussão de um caso bárbaro em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre. Dois homens foram flagrados furtando o equivalente a R$ 200 em picanha num supermercado.

Imagens mostram seguranças e gerentes de supermercado torturando dois homens por suposta tentativa de furto de carne. - DPHPP/Polícia Civil de Canoas

Seguranças terceirizados e funcionários do estabelecimento os levaram ao depósito do mercado e os torturaram. Espancaram-nos com um pedaço de madeira e, escárnio supremo, com a carne furtada, embalada num saco plástico. Uma surra de picanha.

Um dos homens teve fraturas múltiplas nos ossos do rosto e precisou ser induzido ao coma. Sim, eu sei que foi o pau, não a picanha.

A barbárie come solta por aqui, mas o assunto é o bife de ouro de Doha. É o Brasil, é o jornalismo, é a Copa do Mundo.

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