Cozinha Bruta

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Boicote ao vinho gaúcho é alívio cômodo de consciências pesadas

Elite urbana se identifica mais do que gostaria com vinicultores envolvidos na contratação de trabalho análogo à escravidão

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São Paulo

Gente que nem bebe vinho nacional está boicotando a Salton, a Aurora e a Garibaldi.

Não se trata, em absoluto, de defender as empresas que terceirizavam trabalhadores em condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. Elas que se virem com seus advogados.

O que causa certo espanto é a intensidade da repercussão deste caso em particular. E, em especial, como reverbera numa certa classe média meio intelectualizada, meio engajada.

Operação com PRF, MPT e Ministério do Trabalho resgatou na noite de quarta (22) trabalhadores mantidos em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves - Divulgação

A libertação dos trabalhadores dos vinhedos gaúchos está longe de ser algo excepcional na ficha corrida do empresariado brasileiro.

De 1995 a 2022, autoridades brasileiras encontraram 60.251 pessoas em regime escravo ou análogo, aponta o Portal da Inspeção do Trabalho, do governo federal. Empresas do porte de JBS, Cosan e Cutrale se embananaram feio, enroscadas com fornecedores de noções trabalhistas medievais.

Nenhuma dessas ocorrências fisgou tanto a indignação da elite letrada urbana. Afinal, os malfeitos se deram nos carnaubais do Ceará, nas entranhas das Minas Gerais, no velho oeste da Amazônia desmatada.

Nada para se identificar, nadica de nada. O caso dos vinhedos é diferente.

Vinho, com o perdão do lugar-comum, simboliza status. É quase irresistível fazer escândalo com a discrepância entre a presunção toscana dos "gringos" da Serra Gaúcha e sua monocultura de casa-grande e senzala.

Eliminar a nódoa do trabalho escravo nos hábitos de consumo é missão dificílima, se não inexequível. Você sabe como foram produzidos o bife, o café, o suco de laranja, o chocolate, o alho, o pistache iraniano, a camisa costurada em Bangladesh ou no Maranhão? Você realmente quer saber?

A Folha fez uma enquete com os leitores sobre a eficácia de boicotar artigos contaminados pela falta de ética. Escrevo antes de sair o resultado e, sinceramente, ignoro como tais ações impactam empresas que não estão com a justiça trabalhista no cangote.

Agora, funciona que é uma beleza para quem boicota. É fácil demais deixar de comprar Salton e meter um chilenão na sacola. Um baita sinalizador de virtude, pois nada vale boicotar em silêncio –mais ainda se você for uma rede de supermercados querendo sair bonita no retrato.

O boicote é um jeito cômodo de aliviar as consciências pesadas das elites urbanas brasileiras.

A identificação com os vinhateiros gaúchos é maior do que gostaríamos de admitir, daí a comoção inédita.

Eles são brancos, descendentes de imigrantes empenhados em construir uma pequena Europa com o açoite cantando no lombo dos baianos. Alguém vê alguma semelhança com São Paulo?

Assim como os colonos italianos do Sul, ainda não largamos mão das prerrogativas de sinhozinho. Temos elevador de serviço, enxames de motoqueiros à disposição e serviçais que, dependendo da casa, não podem usar a louça do patrão.

Confrontar-se com toda essa feiura dói, mas precisaremos fazê-lo se quisermos de fato começar a consertar as coisas. Ajudaria na tarefa se cada um carregasse o peso da própria consciência.

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