É Logo Ali

Para quem gosta de caminhar, trilhar, escalaminhar e bater perna por aí

É Logo Ali - Luiza Pastor
Luiza Pastor

Preste atenção a seus limites

Insistir em ir além do que o corpo avisa que aguenta é pedir para arrumar encrenca

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Temos dito e repetido neste blog que caminhar é uma atividade democrática, acessível a praticamente todo mundo, que é tipo comer e coçar, só começar e sair por aí, sem medo de ser feliz. Mas seria desonesto afirmar que nunca fui além do que achava que poderia. Um tanto de otimismo misturado a porralouquice costumam resultar numa mistura infernal. E podem fazer muito mal à saúde. Ou, no mínimo, ao ego.

Ressabiada com experiências de abusos anteriores, pedi a um amigo experiente para irmos testar um fim de semana de trilha com a mochila carregada com tudo o que constava da lista enviada como "itens essenciais" para a subida ao Monte Roraima (2.810 m de altitude), já contratada. Pesando tudo aquilo, a soma girava em torno dos 13kg, mesmo eliminados alguns excessos que já identificara a olho nu. Desconfiava que nem no mais louco dos meus delírios eu conseguiria carregar tudo aquilo paredão acima —vocês já deram uma espiada na cara dessa montanha? Não era à toa que o "imperador" daquela novela global só chegava lá em cima de helicóptero...

Vista aérea da ponta do Monte Roraima
Vista aérea da "proa" do Monte Roraima - Arquivo pessoal

Dê-se o desconto à agência de que eles alertam com todas as letras para a possibilidade (na verdade, uma recomendação até humanitária) de se contratarem carregadores, índios venezuelanos da tribo que vive no parque que abriga o monte Roraima, e que carregam morro acima até 15kg para cada turista por uma diária ridícula que, na época, equivalia a R$ 10, sim, DEZ REAIS. Mas a pessoa tinhosa, aqui, queria testar para ver se daria conta de levar tudo sozinha, mesmo com uma lombar sabidamente artrosada aconselhando largar de ser besta.

Duas pessoas carregam mochilas
Mochilas cargueiras na Serra do Papagaio ORG XMIT: hjb6aXbwNxV7XcYHseIQ - Arquivo pessoal

Fomos, assim, testar uma caminhada que deveria chegar até o Pico do Papagaio (2,1 mil metros de altitude), em Aiuroca, sul de Minas Gerais. E bastaram poucos metros morro acima com aquelas tralhas todas para concluir que, sim, eu contrataria um carregador local para levar minha mochilona cargueira, tão linda e ergonômica, ao topo do monte Roraima; e não, eu não tinha a menor condição física para carregar tudo aquilo sequer naquele lugar de acesso bem mais suave. Me permitindo a humilhação de distribuir parte do peso que deveria ser meu entre meus amigos (ah, e que amigos, eu já disse que amo vocês?), me consolei pensando que isso, no final das contas, contribuiria um tiquinho com a combalida economia venezuelana: o valor que eu pagaria pelos dez dias de trabalho duro do carregador da aldeia indígena Paraitepuy equivaliam na época (2017) a quase a metade do salário mínimo mensal do país. Não se consola quem não quer.

E foi pensando em gente como a gente, ou, pelo menos, como eu, que o blog foi ouvir o que tem a dizer a doutora Renata Castro, especialista em cardiologia e medicina do esporte, com pós-doutorado na universidade Harvard e bi-campeã pan-americana de kickboxing, para saber um pouco mais de como funciona nosso corpo quando chamado a uma atividade que não lhe é habitual. Será que isso é tão simples quanto parece ou é bom relativizar? E ela nos contou o que acha da propalada democracia da prática da caminhada.

O olhar da medicina

Médica especialista em cardiologia e medicina esportiva
A médica Renata Castro, especialista em cardiologia e medicina esportiva - Divulgação

1. Doutora, afinal, é verdade ou mito que a caminhada é uma atividade que serve para todo mundo? Bom, isso depende. As pessoas pensam assim, ah, vou caminhar, é tranquilo, não tem risco. Só que não é bem assim. Para alguns, caminhar vai ser um exercício leve demais e talvez nem traga tantos benefícios, porque um dos princípios do treinamento físico é o da sobrecarga. Ou seja, se você faz um treino leve demais, ele não vai gerar as adaptações desejáveis no seu organismo. Já para outras pessoas, pode ser um exercício extremamente extenuante, por exemplo, para quem tem doenças cardíacas ou pulmonares. Então, sempre se indica que a pessoa faça uma avaliação médica.

2. Até para dar uma volta pelo quarteirão? Claro que se for uma pessoa sem sintomas, sem queixa nenhuma, sem doença nenhuma, ela até pode começar a praticar caminhada como atividade física regular. Existem inclusive alguns questionários de autoavaliação, como o canadense PAR-Q (disponível em português no link https://www.cepe.usp.br/wp-content/uploads/PARQ-site-CEPE.pdf). São dez perguntas, e se você responder a alguma delas com sim, deve procurar um médico antes de começar a caminhada. Porque muitas vezes, a partir dessa avaliação, acabamos identificando doenças ou alterações que a pessoa nem conhecia.

3. E o peso da mochila, quando se faz uma trilha, por exemplo, ou um piquenique, faz mesmo muita diferença? Sim, é muito importante, e isso a gente já conhece há muitas décadas, o impacto do chamado peso morto sobre o gasto energético em uma caminhada ou corrida. Peso morto é aquilo que você tem que carregar, mas que não te ajuda fisicamente, seja uma mochila ou a gordura da pessoa obesa. O peso da mochila (ou da gordura) vai impactar muito na intensidade do esforço e, portanto, no quão bem de saúde a pessoa vai ter que estar para poder fazer aquela caminhada, ou trilha. Isso é um dado muito importante que as pessoas às vezes se esquecem de considerar. E aí vêm os problemas.

4. E como a pessoa pode avaliar o peso ideal para sua mochila? A primeira coisa é saber a velocidade com que se pretende fazer a caminhada, a inclinação e as características do terreno. E entender que nosso organismo funciona como se tivesse dois motores, um 1.0, que te leva aonde você quer, mas não pode pisar muito forte, e um turbo que você usa para algumas situações específicas, como subir uma ladeira, mas que não dá para manter a viagem toda ligado. Então, o motor 1.0 a gente chama de metabolismo aeróbico, teoricamente infinito. Só que, dependendo da intensidade, do esforço, só ele não é suficiente -e aí o organismo precisa ligar o turbo, que é o anaeróbico, que só dá para usar por alguns minutos. Então, a gente tem que considerar que a trilha tem que ficar abaixo do limiar anaeróbico, ou seja, abaixo dessa demanda pelo "turbo" na maior parte do tempo. Há testes que ajudam a avaliar se a pessoa é capaz de fazer tal prova, ou expedição, carregando uma mochila e de quantos quilos.

5. E a ergonomia da mochila impacta esse desempenho? A princípio não influenciaria tanto, mas se o formato incomodar ou dificultar a movimentação, vai ficar mais difícil, sim, porque vai implicar em gasto energético maior. Não é incomum que alguém me procure para uma avaliação de performance e identifiquemos equipamentos inadequados àquela pessoa. A adequação dos equipamentos muitas vezes precisa de avaliação biomecânica, fisioterápica, de grupos multidisciplinares.

6. A senhora sentiu aumento da demanda por pacientes que saíram por aí andando sem orientação na pandemia e tiveram problemas? Uma coisa importante que percebi mais ostensiva com a pandemia é que há diferença entre ser sedentário e ter um comportamento sedentário. Indivíduo sedentário é aquele que não atinge as recomendações mínimas de atividade física semanal recomendadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde), que seriam 150 minutos de atividade aeróbica de moderada intensidade ou 75 minutos de alta intensidade, dois treinos de musculação. E, para quem tem mais de 65 anos, treino de flexibilidade.

Mas vemos muitas pessoas que acordam cedo, fazem sua atividade física diária, até ultrapassam a recomendação mínima da OMS, mas passam o resto do dia sentadas em home office. E aí, isso é o que chamamos de comportamento sedentário. Diversos estudos já deixaram claro que é preciso quebrar esses períodos sem se movimentar.

O ideal é que a cada uma hora a pessoa se movimente nem que seja por dois minutos, porque aí abandona o comportamento sedentário, que está associado à obesidade, ao aumento da circunferência abdominal, a doenças cardiovasculares. E isso, sem dúvida, aumentou muito, por causa da prevalência do comportamento sedentário.

7. Os aplicativos que medem frequência cardíaca, distância e calorias são eficazes? Eu sou muito fã desses aplicativos. Acho que ajudam muito, motivam muito as pessoas, mas têm que ser usados com orientação -e aí tem muito erro. Não adianta comprar um relógio muito caro e sair fazendo treinos aleatórios, sem orientação do profissional adequado. Como médica do esporte, trabalho muito com essa área de fisiologia e oriento meus pacientes a usarem esses equipamentos com orientação, em conjunto com profissional de educação física.

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