É Logo Ali

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É Logo Ali - Luiza Pastor
Luiza Pastor
Descrição de chapéu

Trilha me faz sentir vivo, diz analista de sistemas de 69 anos

Cesário Simões e Gladston Holanda mostram que nem só de bilhete único gratuito se faz a mobilidade dos mais velhos

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Se eu disser que comecei a fazer trilhas quase aos 60 anos seria uma mentira com um bocado de verdade. Mentira porque, entre meus frescos 19 e 20, me permiti seguir o (então bem mais rústico do que hoje) trajeto de quatro dias da Trilha Inca, de Cuzco a Machu Pichu, no Peru, e dar um passeio de 78 quilômetros entre o sul do Corumbau e Porto Seguro, no sul da Bahia. Naquela época, meados da década de 1970, as mochilas eram trambolhos mal resolvidos, não havia roupas ou calçados adequados no Brasil —mas as lombares eram tão jovens que nem ligavam para esses detalhes.

Por esses atropelos da vida, horários apertados e agendas enlouquecidas, só fui retomar o gosto pelo hábito de bater perna meio que por acaso, depois de terminar uma corrida de São Silvestre, em dezembro de 2014, quatro décadas mais tarde. Sem ânimo para maratonas, ainda analisava as possibilidades quando um amigo sugeriu juntar-me a um grupo que faria o Caminho de Santiago, na Espanha. Já contei essa história aqui. O fato é que tomei gosto pela coisa e, desde então, tenho tentado ir sempre um passo além, mesmo que algumas vezes só chegue até o shopping mais próximo e outras me embrenhe pela floresta amazônica. Tudo faz parte.

Nas viagens que faço, procuro sempre fazer um diário da jornada. Não raro escrevo à mão, papel e lápis à moda antiga e, na primeira oportunidade de conexão, jogo tudo na nuvem e nas redes sociais, exibida que só. Entre os amigos que me seguem, todos por volta da mesma faixa etária, a imensa maioria acompanha os relatos de seu confortável sofá e jura que não teria nenhuma condição para fazer nada disso. Só que não é bem assim, há um tanto de exagero aí. E para provar que nós, jovens há mais tempo, como diz uma amiga, temos condições de desfrutar do melhor que a natureza tem para oferecer, o blog foi ouvir gente que sabe bem do que estou falando.

Homem de 69 anos mostra a vista de sua casa para as montanhas da região de Anitápolis
Cesário Simões, 69, mostra a paisagem da região de Anitápolis, com a Serra Geral ao fundo, no extremo norte dos Aparados da Serra (SC) - Arquivo Pessoal

Gente como Cesário Simões, 69, morador de Anitápolis, na Grande Florianópolis (SC), que tem entre as lembranças mais antigas ver a mãe caminhando pela orla de Santos (SP). "Também tínhamos um terreno que era puro mato, em Ribeirão Pires, e quando íamos para lá adorava andar por tudo aquilo", conta o analista de sistemas aposentado. Já adolescente, saía à procura de praias desertas (elas eram muitas, acreditem, antes de a Rio—Santos ser entupida de condomínios e suas praias, de turistas). Dava até para praticar naturismo, mas não digam que fui eu que contei, combinados?

Entre suas trilhas favoritas, Simões cita a do Índio, que sai bem perto da casa em que mora atualmente, um sítio com uma vista de tirar o fôlego. "Acabo fazendo menos do que gostaria, porque a pandemia atrapalhou tudo e a Covid que peguei me obrigou a ir mais devagar, o cansaço ficou muito grande um bom tempo", explica ele. Mesmo assim, perdeu a conta de quantas vezes já percorreu o Índio: "Ah, umas 20 vezes, pelo menos", chuta. E mal vê a hora de se juntar outra vez ao grupo de amigos que a pandemia isolou.

O o que leva Simões a se embrenhar pelo mato, afinal? "Sempre traz muitos benefícios, a começar pelo psicológico", conta. "Quando alguém olha para você, já com alguma idade, e comenta que aquela trilha não é muito leve, tem alguma dificuldade, mas você insiste, vai lá e consegue fazer, se sente muito bem, é uma experiência incrível da qual volta com muito cansaço físico, mas se sentindo vivo. Só quem faz entende", resume.

Homem de 71 anos no alto de um morro onde fica a Pedra do Macaco
O jornalista Gladston Holanda, 71, no alto da Pedra do Macaco, em Maricá (RJ) - Reprodução Facebook

Mas se a endorfina nos enche de otimismo, também é importante reservar um canto da mochila para uma boa dose de prudência. O consultor de comunicação e jornalista Gladston Holanda, 71, forma nas linhas dos que tentam equilibrar o bom senso com a vontade de ir mais longe.

"Comecei a fazer trilhas muito tarde, há uns 15 anos, não sabia quanto isso podia ser bom", conta o pernambucano radicado em São Paulo que, antes da pandemia, participava assiduamente de um grupo do Rio de Janeiro que todo domingo se encontrava na Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul da capital carioca, para seguir em caminhada pela Floresta da Tijuca. O gosto pelo mato cresceu tanto que ele resolveu se arriscar sozinho, sem guia, em uma das trilhas do Parque Nacional de Itatiaia. "Foi burrice", confessa, embora sem muita convicção. A trilha escolhida previa três horas de ida e outro tanto de volta e, teoricamente, não apresentava nível alto de dificuldade. "Mas, aí, depois de dois tombos bobos que felizmente não deram em nada grave, pensei que eu poderia ter quebrado uma perna e não haveria ninguém para acudir, pois nem o celular funcionava por ali", lembra. Nota mental: se não conhece muito bem por onde vai andar, procure sempre um guia. E, por favor, escute o que ele tem a dizer!

"Pois é, com a idade, a gente tem que pensar duas vezes antes de arriscar esse tipo de coisa, na adolescência temos a bênção da ignorância e da irresponsabilidade", avalia Holanda, em meio a boas risadas.

Para ele, como para Simões, a atividade é quase uma terapia. "É muito bom, parece que limpa tudo", ressalta, com um detalhe: "Para mim, a melhor sensação é sempre durante a volta, é aquele sentimento de 'eu consegui', já sem a tensão do desconhecido, das dúvidas sobre se vai dar certo ou não, principalmente quando não conheço o lugar". E compara o final de uma boa trilha com o salto de paraquedas que fez há poucos anos. "Na hora de saltar é tenso, você pensa em mil coisas que podem não dar certo, mas quando chega no chão já está querendo fazer de novo", diz.

É isso, a gente sempre quer mais. E temos plena consciência de que o tempo é cada vez menos.

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