É Logo Ali

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É Logo Ali - Luiza Pastor
Luiza Pastor
Descrição de chapéu

O difícil caminho para o nosso Everest amazônico

Volta das excursões ao ponto mais alto do país pede preparo físico e psicológico

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Ainda nos bancos escolares aprendemos que o Brasil não tem montanhas altas por tratar-se de território mais antigo cujos maiores picos sofreram mais milhões de anos de erosão que os de outras freguesias, lembram? Há até hoje intensa discussão entre acadêmicos que questionam se podemos ou não chamar de montanhas o que, na verdade, seriam apenas montes, morros, qualquer coisa longe da imponência de cordilheiras como a dos Andes ou a do reverenciado Himalaia, essas, sim, incontestavelmente dignas de serem chamadas de montanhas.

Mas enquanto especialistas não resolvem se temos ou não montanhas para chamar de nossas, um grupo de montanhistas conta ansioso os dias para seguir até o cume mais alto do Brasil —o pico da Neblina, a exatos 2.993,78 metros de altitude segundo medição mais recente confirmada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) com a ajuda de satélite. Ou Yaripo, " montanha do vento", como o chamam reverentemente os índios da etnia yanomami, moradores e donos do pedaço cobiçado por garimpeiros.

Vista de drone do Pico da Neblina com grupo-piloto no cume - Marcos Amend -6.jun.17/Folhapress

E é para o Pico da Neblina, ou Yaripo, que acaba de ser reaberta a possibilidade de acesso a turistas muito especiais: aqueles que têm condicionamentos físico e psicológico suficientes para encarar não apenas os perrengues habituais de uma subida, mas a jornada até sua base pelas trilhas barrentas da floresta amazônica em um Toyota velho, mais sete horas de "voadeira", a canoa com motor de popa tradicional na região, até o coração do Parque Nacional do Pico da Neblina, dentro da Terra Indígena Yanomami. De lá, depois da bênção dos yanomamis, começa a subida. Ao todo, são de sete a dez dias de jornada, dependendo do fôlego dos participantes e das condições meteorológicas..

Magno Souza, da Roraima Adventures, no centro, com os yanomamis que abençoam a expedição ao Pico da Neblina (Yaripo). - Divulgação

A aventura não é mesmo para qualquer par de pernas e uma mochila cheia de boa vontade. O empresário Magno Souza, dono da Roraima Adventures, de Boa Vista (RR), especialista em experiências amazônicas como a subida ao monte Roraima, conta que começou a articular a operação do acesso ao pico da Neblina em 2007. Só em 2009 conseguiu subir pela primeira vez, depois de muita conversa com os yanomami, a Funai e o Ibama.

"Só que, de repente, já em 2010, aquilo tinha virado a casa da mãe Joana, muita gente começou a querer explorar o acesso sem experiência e sem respeitar a cultura e os costumes dos yanomamis, e o Ministério Público proibiu de vez o acesso", conta ele. O isolamento iria até 2015, quando a Funai publicou instrução normativa regulamentando o turismo em áreas indígenas. Retomadas as conversas, acabaram sendo autorizadas três operadoras que se responsabilizariam pela organização da jornada, indicadas pelo pioneiro Souza. "Não queríamos monopólio, mas precisávamos de gente que conhecesse o meio, as dificuldades específicas da região", explica ele. Além da Roraima Adventures, estão credenciadas como operadoras a Amazon Emotions e a Ambiental Turismo.

De conversa em conversa, a primeira expedição-piloto, realizada em parceria da Roraima Adventures e da Amazon Emotions, levou dez visitantes-cobaias para o topo, em 2017, incluindo um repórter da Folha. Estava tudo preparado para dar início aos pacotes em março de 2020 —mas aí veio a pandemia e, com ela, a suspensão de toda a programação.

Só há poucos dias, mais exatamente em 17 de março passado, a primeira turma de dez turistas saiu de São Gabriel da Cachoeira (AM) em direção ao Parque Nacional. Desses, dois ficaram pelo caminho.

Na floresta, o mais previsível é o imprevisto

"O impacto da floresta, da alimentação e da cultura tão diferente dos yanomamis, que acompanham os grupos em todo o percurso, forçaram dois dos membros do grupo a desistir já no segundo dia da expedição", relata Souza. "Eles reconheceram não terem condição psicológica para enfrentar uma trilha de tanta dificuldade, e saíram a tempo", acrescenta.

No site das operadoras e agências parceiras é alertado sem meias tintas que se trata de uma trilha de alta dificuldade. Pessoas que estejam com mais de 10 kg acima do chamado "peso ideal" devem passar por uma entrevista antes de fechar o pacote. E quem tem problemas de joelhos, coluna ou qualquer tipo de enfermidade crônica ou psicológica só deve se dirigir ao guichê da agência depois de consultar um médico. A coisa ali é séria.

"Não é exagero, é cuidado e responsabilidade", ressalta Souza, lembrando que se trata de uma jornada na qual, por mais que a equipe de apoio se esforce para cuidar de acampamento, alimentação, transporte, primeiros socorros e, até, comunicação por satélite para emergências, "o mais previsível é sempre o imprevisto". E o imprevisto, em um lugar tão distante de tudo, pode ser uma grande encrenca, quando não acabar em morte.

Mas, então, por que alguém iria querer se meter em tamanho desafio? Bom, em primeiro lugar vem sempre a célebre resposta que o alpinista britânico George Mallory deu ao repórter do The New York Times que lhe perguntou, em 1924, por que queria tanto subir ao topo do Everest (jornada, por sinal, na qual morreria): "Porque está lá". Pois nada como saber que algo "está lá", desafiando nossas habilidades, para forçar o primeiro passo à frente.

Só que tem mais que perrengues, segundo Souza, que acompanhou esse primeiro grupo da retomada: "Nada pode relatar a intensidade do que se sente ao chegar ao pico depois de tantas dificuldades, muita chuva, frio, calor, umidade, a floresta, o rio, tantas experiências diferentes seguidas sem trégua", suspira esse matogrossense de Campo Grande com o sorriso de quem, aos 60 anos recém-cumpridos, não vê a hora de voltar a subir.

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