É Logo Ali

Para quem gosta de caminhar, trilhar, escalaminhar e bater perna por aí

É Logo Ali - Luiza Pastor
Luiza Pastor
Descrição de chapéu escalada

Aclimatação é metade do caminho para os altos picos

Sem adaptar o corpo corretamente à altitude, é grande a chance de insucesso

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Há alguns anos, depois de completar o Caminho de Santiago, achei que estava pronta para empreitadas mais ousadas. Resolvi que a expedição seguinte teria que incluir uma subida ao topo do Huayna Potosi, montanha na cordilheira dos Andes, na Bolívia, com 6.088 metros de altitude e um belo cume de neve eterna. Sabia, assim, de orelhada, que seria preciso fazer alguma aclimatação, ou seja, acostumar o organismo com a altitude atípica. Para isso, dediquei as três semanas anteriores a percorrer trilhas em diversas regiões acima dos 4.000 metros, e algumas acima de 5.000, como o Chacaltaya (5.421 metros).

O que imaginava ser a preparação ideal correu sem maiores dificuldades, me convencendo de que estava pronta para o Potosi. Tolinha! Um americano que encontramos e que desconfiou do exagero de nossa meta sugeriu que testássemos o fôlego e o preparo físico em uma montanha menor, mas de subida classificada tecnicamente como difícil, o pico Áustria (5.320 metros). Já com pouco tempo para a empreitada, subimos o Chacaltaya num dia e no outro seguimos para o Áustria. No dia seguinte, encararíamos o Huayna Potosi.

Montanhas da cordilheira Real, com o Huayna Potosi ao fundo, visto desde o pico Áustria
Ao fundo, o pico nevado do Huayna Potosi, visto desde o pico Áustria - Luiza Pastor/Acervo pessoal

É ignorância que chama, ou será soberba?

Encurtando a história: a pouco menos de 40 metros do cume do Áustria (que exigiriam pelo menos mais 3 horas de ziguezague pela montanha), a ilusão acabou. A cada poucos passos, o relógio marcava 180 batimentos cardíacos por minuto, uma barbaridade para uma sexagenária metida a besta. A sensação era de saco vazio, energia zero, as pernas tremiam no meio das pedras soltas da trilha e as mãos se recusavam a firmar os bastões. Em suma, encrenca anunciada à vista.

Demos, então, meia volta e, engolindo o orgulho, descemos tudo de novo. Gentilmente, fui alertada pelo guia de que a subida, menos de 24 horas depois, ao Potosi, deveria ser cancelada. Não haveria tempo para aclimatação adequada.

A montanhista Rúbia Silva, com o Huayna Potosi ao fundo
A montanhista Rúbia Silva, com o Huayna Potosi ao fundo - Moeses Fiamoncini/Acervo pessoal

"Essa sua história é típica", me consola Rúbia Silva, da Vertex Treks, agência especializada em levar grupos para altas montanhas em todo o planeta. "A pessoa pensa que é só subir e dormir, subir e dormir e ir seguindo, mas não é bem assim". Entre as regras básicas (e que, incautos e inexperientes, não seguimos) ela cita subir e descer mais acentuadamente, com descansos proporcionais ao preparo do montanhista.

"Sem aclimatação adequada, pode ser um atleta medalhista com quinhentas medalhas olímpicas de ouro, que não vai chegar a lugar nenhum", garante Rúbia, montanhista há nove anos com experiência em algumas das mais altas montanhas e trilhas do mundo —como o estrelado trekking até o campo-base do Everest. Ela ressalta, ainda, que o preparo físico para a montanha não é exatamente sair puxando ferro na academia, no melhor estilo Arnold Schwarzenegger. "Um corpo musculoso demais vai ter mais dificuldades para a aclimatação, porque quanto mais músculo, mais oxigênio o corpo exige". Como o ar é rarefeito nas maiores altitudes, o equilíbrio é fundamental, explica.

A montanhista Thais Cavicchiolli Dias, que recentemente voltou de uma longa viagem pelos principais passos entre as montanhas do Himalaia, explica que, para enfrentar a severa altimetria (diferença de altitudes enfrentadas em cada trecho do percurso), adotou duas técnicas diferentes.

"A primeira era ganhar altitude devagar, tentando a cada noite não dormir mais de 300 metros acima do que na noite anterior", conta ela. "E combinei esse modelo de aclimatação com o que eles chamam de ‘climb high sleep low’, que é basicamente trilhar alto e dormir embaixo". Ou seja, se um dia ela subia uma montanha mais alta, descia para dormir no nível da noite anterior. "Eu passava dois dias na mesma altitude e no terceiro dia ganhava em torno de 300, 400 metros no máximo", diz, acrescentando que a hidratação também foi fundamental para seu desempenho. "Tomava pelo menos 4 litros de água por dia, o que não é fácil, mas como na altitude o clima é muito seco e frio, a gente sua pouco e sente menos sede, então tomar muito líquido é importante".

Thais Cavicchioli Dias, no acampamento-base do Everest, no Nepal - Thais Cavicchioli Dias/Acervo pessoal

A digestão, continua Thais, também ficou mais lenta, o que foi resolvido reduzindo ao mínimo a primeira refeição do dia antes do início da caminhada e dividir o consumo de alimentos em pequenas doses ao longo da caminhada. "Só quando sabia que já não ia mais caminhar, que ia poder descansar, tomava uma refeição maior, para deixar o corpo fazer a digestão sem pressão", conta.

Bom, agora que já sei o tanto que fiz de errado naquela montanha que me humilhou, quem sabe um dia dou um jeito de voltar lá e fazer as coisas direito, não?

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.