Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

Cartografia de um entre-tempo

Novo texto tramado com tecidos retirados de tudo que publiquei ao longo do ano

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Pensar em retrospectivas e olhar para o passado vêm sempre carregado de diferentes tempos e memórias. Reabitar espaços-tempos de um longe nem tão distante provoca um saudosismo típico do último dia do ano. O ano de 2021 começou com a Dramaturgia dos Céus de Edith Derdyk, como uma previsão do que estava por vir, e termina com esse novo texto costurado, tramado com tecidos retirados de tudo que publiquei ao longo do ano. O resultado? Uma cartografia de um entre-tempo passado e futuro sem tanto começo nem fim. Com palavras escritas por mim ou por algum convidado sugiro um mapa inventado, individual, que se conecta diretamente ao meu ser/estar, mas que pode abrir algumas gavetas bem particulares em cada um de vocês que decidirem imergir nessa cartografia.

pedras sobrepostas
Série Sólidos tempo II, para Heloisa Galvão uso exclusivo entretempos - Cassiana Der Haroutiounian

Cartografia de um entre-tempo

"A reação catastrófica, que no homem se manifesta como angústia, não seria o fim, porém a condição para um novo começo" Peter Pal Pelbart, O Avesso do Niilismo

E assim vagamos, quase sem sentir a escuridão. Em sua profundidade, edifícios gigantescos levantaram suas fundações aéreas e nos deixaram passar sem dificuldade alguma. Um sussurro atmosférico direcionou nossa jornada, que se tornou uma dança, uma enlouquecida e monótona dança composta de sombras interligadas. Puxando um ao outro, rodamos em torno de algo com uma desesperada, sem sentido e inconsciente excitação. Dança da terra, dança dos mártires. O sonho da Terra é uma metamorfose. O que é pedra vira borboleta, o que é pau vira vento, o que é vapor vira chuva, as nuvens despencam em tempestade. Toda essa fantástica movimentação da vida é o sonho da Terra. É a transformação, a metamorfose.

É paradoxal o que a presença de outro corpo provoca em tempos excepcionais. Quando a proximidade é alçada à categoria de alerta, como decidir se vale a pena dar um passo em direção ao outro? E depois do primeiro, mais um, então alguma parte do corpo encosta no outro, os braços se abrem, um carinho é trocado, um beijo acontece. Considera-se tirar a roupa e se deixar levar pelo desejo.

Não existe contato entre humanos sem uma parcela de risco. Amor, paixão, obsessão, mania, tudo começa com um encontro. Com muitos encontros, o risco é o tédio, o desprazer, a indiferença, o fim. Mas entre a obsessão e o tédio pode passar uma vida inteira.

Quando os corpos se grudam como ímãs dá a impressão de que nada, nunca, pode ser tão bom. Então nos condenamos a passar o resto do tempo que temos de vida em busca de outros momentos assim.

Cada montanha é um baú que contém as leis políticas mais importantes de um território, de um povo. Tudo acontece dentro delas, mantendo a sensação de um grande container de rochas e memórias. Um labirinto de tempos, esperas, conflitos e sonhos em uma só pedra.

"Existe uma alma dentro da alma. Procure-a. Há um tesouro em sua montanha. Procure-o. Um místico movimento, se é isso que você é, não procure por aí; procure dentro." Rumi

E aí, nessa descompostura, encontro o cerne do amor. Compreendo exemplarmente que o objeto amado é sempre uma invenção, a máxima desprogramação do real, e, nesse mesmo instante, devo aceitar que os apaixonados possuem outra visão, uma visão misteriosa e subjetiva. Afinal de contas, os seres humanos se apaixonam como loucos. Como loucos.

Instante privilegiado da corrente temporal, ungido com uma luz especial. Nesse aqui e nesse agora algo principia. O tempo cronológico sofre uma transformação decisiva: cessa de fluir, deixa de ser sucessão instante que vem depois e antes outros idênticos e se converte em começo de outra coisa.

"Só no vácuo o movimento se torna possível. Aquele que fizer de si mesmo um vácuo, no qual outros possam entrar livremente, se tornará dono de todas as situações. O todo sempre domina a parte." Kakuzo Okakura

Passado.Presente.Futuro.

A morte e o que não aconteceu, podiam ser a mesma coisa, porque vem do mesmo lado, mas são completamente antagônicas. E entre uma e outra existe tanta coisa. Inclusive o permanecer.
Acontece é que em horas irregulares do dia, um vizinho distante, mas audível de plenos pulmões, grita: FORA GENOCIDA! FORA ASSASSINO! Meu vizinho funciona como um relógio cuco da distopia, e sempre que ele grita eu sorrio, sinto um alívio, é alguém resistindo, marcando o tempo que se apaga.

"Quando enfim

fechássemos o mapa

o mundo se dobraria sobre si mesmo

e o meio-dia

recostado sobre a meia-noite

iluminaria os lugares

mais secretos"

Estar longe mas imaginar e aos poucos preparar o momento em que nos veríamos de novo. A cada vez que nos víamos, as coisas eram sempre muito intensas, muito sérias: tudo era levado com uma gravidade que chegava ao insuportável, e os bilhetes eram uma maneira de continuar depois do fim o que de fato não tinha fim. Como se fosse um novelo que começa com uma linha entre dois pontos. Essa linha triangula, se tece numa cama de gato, cria um monte de diagonais… Todas as conversas e textos formam um emaranhado em que as linhas se atravessam e entrelaçam suas singularidades.

Tão bonita essas relações entre o microcosmos e o macrocosmos em coisas ordinárias da vida: coisas, a princípio, "banais" e as grandes coisas da vida. Pequenas revoluções cotidianas e grandes revoluções sociais. Por que existe alguma coisa e não nada? A resposta dos cosmólogos é simples: existe alguma coisa e não nada porque o vazio é instável. Entendemos assim a frase inicial desse artigo que é ‘o universo estava condenado a existir.

Um dia. Vai ser seu fim. E tudo bem, porque enquanto não é assim sente que a dor que toma seu sangue é uma dor simples. Uma dor que não machuca mais que o necessário. É como o fim de uma longa viagem, é olhar para as fotos que estão em uma gaveta e precisam ser olhadas… Com toda a saudade e alegria que isso possa causar. Essas duas últimas semanas tiveram muitos domingos. E isso acontece, às vezes. É quando todos os dias se rebelam e resolvem descansar, domingo é o sétimo dia, dizem que nele Deus descansou.

Aquele quarto de hotel

O tempo concentra-se no encontro

como a doçura no figo

confundem-se teu nome e o nome do mar

estrangeiro

teu corpo e a laranjeira acesa

no pátio do hotel

e ainda todas as pequenas coisas

que não aconteceram

a partir deste encontro

para nenhum futuro

"O amor nos liga às coisas. Trata-se de uma real conexão, uma ampliação da individualidade que se relaciona e absorve essas outras coisas amadas. Aquilo que amamos se torna imprescindível e que não podemos viver sem sua presença e logo as propriedades do que amamos se tornam assim também para nós e então o amor vai ligando uma coisa a outra em uma estrutura essencial". José Ortega y Gasset.

Cada vez me afasto mais de mim. Não é algo que me incomode, essa distância. Ao contrário, encaro a minha ausência com grande alegria. Não mais precisar existir. Ao menos não dessa maneira insistente. Histriônica. Existir como quem pula gritando no abismo, huaaaaaaááá. Existir em furta-cor. Não, agora apenas uma existência mínima. Existo minimamente, em silêncio. Caminho imperceptível. Não, não é a morte, que a morte é uma espécie de escárnio. Falo de outra coisa.

Depois desse dia não nos vimos mais.

"Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?"

Saudade de começos, do modo como a chave fechava a porta. da visão que vê seus objetivos, seus fins. escolher o lugar e a música da noite com artificiosa naturalidade. isto é o exercício passional de medir o pulso do Ser. disto, isto é, desta saudade, trata-se de recapitular o mais belo capítulo do conto: o primeiro, improvisado com destreza de prelúdios. assim nasceu a saudade de todo e cada acidente belo. que saudade não é memória. Saudade é seletiva como um bom jardineiro; ela é repetição de memórias quando suas ervas daninhas fossem removidas.

E quando nós nos entendemos por completo, e é raro isso, raríssimo, não sei, algo morre. Ou nasce de novo, de outro jeito. E aí cabe aos dois saber o que fazer com isso.: com todo esse conhecimento e essa magia que já não brilha mais, que virou fato.

Ao final de um eclipse, o céu volta a ser o mesmo, mas nunca mais é o mesmo.

Passado.Presente.Futuro.

Muito obrigada a todos que estiveram perto nessa jornada do blog e que muitos outros devaneios e mergulhos sejam possíveis a partir de amanhã.

Edith Derdyk

Julia de Souza

Zabel Yesayan e Juliana Nersessian

Maria Saakyan e Tamar M. Boyadjian

Galeria Superfície

Teté Ribeiro e Nan Goldin

Mariana Tassinari e Alberto Tassinari

Diamela Eltit e Paz Errázuris

IMS

Iara Biderman e Wang Wei

Júlia de Carvalho Hansen e May Parlar

Rafael Jacinto

Flavia Aranha

A Escrevedeira

Leda Cartum e Anna Reivilä

Paulo Miyada e Anna Maria Maiolino

Cao Guimarães

Mario Novello

Sofia Boito

Ana Martins Marques e Felix Gonzalez-Torres

Denilson Baniwa

Laxmi Fernandez e Renate Eisenegger

Regina Parra

Ícaro Lira e Gabriel Bogossian

José Damasceno

Noemi Jaffe e Hiroshi Sugimoto

Carola Saavedra e Ismail Zaidy

Manuela Eichner e Julia Feldens

Thiago Rocha Pitta e Pedro Cesarino

Ilana Feldman

Julia Codo e Guillem Vidal

Luiza Romão

Ana Roman, Marcelo Amorim e Nino Cais

Bosco Sodi

Juliano Garcia Pessanha

Nazik Armenakyan e Anna Davtian

Pedroluiss

Mahmud Darwich e Abdulrahman Katanani

Hoda Barakat, Joana Hadjithomas e Khalil Joreige

Iman Humaydan

Editora Tabla

Rachid Al-Daif e Mireille Honein

Geraldo Adriano Campos

Rafaela Kahvegian

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