Entretempos

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Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

Lorenzato: Paisagens, na Gomide & Co e livro publicado pela Ubu

Ensaio Palavra-Imagem

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Neste Ensaio Palavra-Imagem trago Amadeo Luciano Lorenzato, o sensacional pintor mineiro que está com uma exposição impecável com 30 de suas pinturas - realizadas entre 1920 e 1993 - na Gomide & Co, com parte do texto de um livro dedicado a ele, publicado pela Ubu, com autoria de Rodrigo Moura. O lançamento está previsto para começo de Abril, e a exposição fica em cartaz até 19 deste mês.

paisagem-pintura de Lorenzato com sua técnica particular
Lorenzato em exposição na Gomide & Co - Ding Musa

A exposição "Lorenzato: Paisagens" procura revisitar a produção de Lorenzato a partir do tratamento que o artista deu às paisagens de Minas Gerais e arredores, apresentando sua natureza, ruas, vielas e personagens empregando um vocabulário estilizado, geométrico e colorido. O modo como imprime textura às suas imagens através das ranhuras realizadas com pentes – resquício de uma técnica de finalização de estuques de madeira e mármore – sinalizam uma sofisticação que singulariza sua obra e o distancia de uma ideia de pintor "primitivo". A investigação formal, o minimalismo das formas e a simplicidade com que esse vocabulário se integra à estrutura do quadro, imprimindo movimento às suas nuvens e a vegetação, são ótimos exemplos da imensidão que as pinturas do artista reivindicam.

paisagem-pintura de Lorenzato com sua técnica particular
Lorenzato em exposição na Gomide & Co - Ding Musa

Faz muito tempo a Ubu está tentando fazer esse livro. Como ele sempre esteve à margem do mercado de arte, pintou a vida inteira com total independência, por isso sua obra é muito autêntica. O livro está organizado em 5 capítulos temáticos, além da introdução e conclusão, com imagens feitas por Mauro Restiffe em Belo Horizonte do universo do artista. A casa onde ele morou e seu entorno.

paisagem-pintura de Lorenzato com sua técnica particular
Lorenzato em exposição na Gomide & Co - Ding Musa
paisagem-pintura de Lorenzato com sua técnica particular
Lorenzato em exposição na Gomide & Co - Ding Musa

Nascido em 1900 na colônia agrícola do Barreiro, na periferia da recém-inaugurada primeira capital planejada do país, no seio de uma família italiana de imigração recente, Lorenzato passou as duas primeiras décadas de vida no Brasil. Deixou o país com os pais em 1920, fugindo da gripe espanhola em direção à Itália, onde recebeu alguma formação acadêmica em pintura. Com um amigo, percorreu diversos países da Europa numa viagem de estudos artísticos à qual ele sempre se referia em entrevistas e pinturas, e que contribuiu para a formação de seu mito como artista outsider, não conformista e libertário. Em Paris, se posicionou de maneira literalmente periférica ao modernismo, observando Picasso e Matisse nos cafés da moda e participando dos trabalhos como operário na Exposition Coloniale Internationale, em 1931. Casou-se na Itália e, com o término da Segunda Guerra, repatriou-se com mulher e filho, radicando-se em Belo Horizonte.

Quando voltou, o Brasil havia se transformado. Seu retorno coincide com o fim da Era Vargas, marcada pela industrialização do país e a emergência de uma classe trabalhadora protegida por relações institucionais tuteladas pelo Estado, como as legislações trabalhistas e o fortalecimento dos sindicatos. Durante esse período, o modernismo se estabelece no âmbito da política oficial das artes e para além dos limites de classe

elitistas e regionais da Semana de Arte Moderna. Os salões de arte moderna do Ministério da Educação promovem artistas egressos das classes trabalhadoras e de outras regiões do Brasil, e grupos como o Santa Helena, em São Paulo, e Núcleo Bernardelli, no Rio, acolhem artistas imigrantes e operários. Artistas com formação não acadêmica e trabalhando às margens do mundo da arte oficial, como Djanira da Motta e Silva José Bernardo Cardoso Jr., José Antônio da Silva e Heitor dos Prazeres, começam a ter projeção com mostras em museus e cobertura da imprensa.

Isolado em Belo Horizonte, Lorenzato começa a pintar aos finais de semana e, depois do acidente, em tempo integral. A capital mineira também tivera seu impulso modernizador, com a construção do complexo arquitetônico da Pampulha e a criação da Escola do Parque, capitaneada pelo pintor flumi- nense Alberto da Veiga Guignard, ambos projetos do prefeito Juscelino Kubitscheck. Lorenzato acompanha esse desenvolvimento à distância, mas não se pode dizer que estivesse alheio a ele. Cruza brevemente com Guignard em 1952, mas uma vez mais é uma interação distante, apenas o reconhece numa exposição.4 Graças a um grupo de patronos, jornalistas e empresários culturais, faz sua primeira exposição em 1965, no clube de elite da cidade, o Minas Tênis Clube, e a partir daí sua carreira se constrói ao longo das suas últimas três décadas de vida. O que o levou a pintar favelas, com as quais conquistou sua fama nos primeiros tempos, foi provavelmente sua própria experiência, quando testemunhou o surgimento de uma favela em uma área de reflorestação de eucaliptos perto de sua casa. Essa escolha, no entanto, coincide com uma iconografia já repertoriada pelo modernismo brasileiro e com aceitação comercial naquele período, algo que, se não é possível dizer que tenha sido calculado, lhe garantiu um lugar de enunciação importante para a construção de sua obra. Sua trajetória se dá, assim, em sintonia com algumas tendências importantes do mercado de arte.

As pinturas de favelas oferecem tanto um campo formal, com o qual ele experimenta com composições semigeométricas, quanto iconográfico, a partir do qual desenvolve um entendimento da paisagem e das relações entre natureza e cultura. Em 1948, no verso de uma pintura, ele escreve uma declaração ao modo de oração, que o acompanhará ao longo da vida:

Amadeo Luciano Lorenzato

Pintor autodidata e

Franco atirador

Não tem escola

Não segue tendências

Não pertence a igrejinhas

Pinta conforme lhe dá na telha

Amém

paisagem-pintura de Lorenzato com sua técnica particular
Lorenzato em exposição na Gomide & Co - Ding Musa

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