Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

Nas águas da dororidade - Ensaio Palavra-Imagem

com Maria Carolina Casati e Lynette Yiadom-Boarky

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Este é nossa segunda edição do Ensaio com o Clube do Livro de Literatura e Psicanálise, organizado pela psicanalista e crítica literária Fabiane Secches, O livro escolhido para leitura conjunta em fevereiro foi o romance "Estela sem Deus", do escritor brasileiro Jeferson Tenório, atualmente publicado pela editora Companhia das Letras. A professora convidada do mês foi a escritora e pesquisadora Maria Carolina Casati, formada em Letras pela Universidade de São Paulo, onde também concluiu o seu mestrado. Atualmente, é doutoranda da Escola de Ciências, Artes e Humanidades da USP e autora do perfil @encruzilinhas no Instagram, em que fala sobretudo de literatura escrita por pessoas negras, com destaque para as mulheres negras. É ela quem escreve o texto abaixo, a convite do Entretempos. Para a Imagem, escolhi Lynette Yiadom-Boarky, escritora e primeira artista afro-caribenha a ter uma exposição solo no Tate e a ser indicada para o Turner Prize no país. Uma artista fundamental para o movimento que alguns chamam de "Renascimento da pintura negra". As figuras nas pinturas de Yiadom-Boakye não são pessoas reais – ela as cria a partir de imagens encontradas e de sua própria imaginação. Ambos familiares e misteriosos, eles convidam os espectadores a projetar suas próprias interpretações e levantam questões importantes de identidade e representação. O diálogo entre ela e a protagonista de Tenório, aqui, se dá de forma cuidadosa e alinhada.

The hours behind you, 2011, de lynette Yiadom-Boakye
The hours behind you, 2011, de lynette Yiadom-Boakye, exclusivo entretempos - reprodução

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Nas águas da dororidade

Maria Carolina Casati

O escritor Jeferson Tenório coleciona prêmios e traduções de seus livros. "O beijo na parede" (2013) recebeu o Prêmio de Livro do Ano pela Associação Gaúcha de Escritores e "O avesso da pele" (2020), o Prêmio Jabuti de Melhor Romance. Essas duas obras contavam com narradores e protagonistas homens, que lidavam com questões como racismo e violência.

Mas, com "Estela sem Deus" (2018), o autor joga alto e ousa ao apresentar como narradora e protagonista uma garota de treze anos. Estela, com seu vocabulário e trejeitos de menina recém-chegada à adolescência, nos conta de sua busca por um Deus que, segundo ela, "não veio" quando foi chamado.

Em episódio do podcast Põe na Estante, Jeferson Tenório contou que o romance é uma homenagem à mãe. O autor diz que fez algumas pequenas alterações na trajetória de Estela, mas que a essência de alguém que é muito sábia a partir do conhecimento cotidiano, e não do erudito, vem daí. E é justamente essa ode às mulheres, às muitas pretas-bruxas-sábias-deusas que nos rodeiam e nos criam, que faz com que o texto seja tão potente.

Nossa protagonista deseja ser filósofa e, em sua jornada, se depara com vários objetos mágicos que a auxiliam a seguir em frente, entre eles o contato com a igreja e com um Deus-homem-todo-poderoso-egoísta-que-não-gosta-de-perguntas-nem-de-poemas. Mas nada se compara às mulheres que orbitam à sua volta. É dororidade no seu significado mais puro e forte.

O termo "dororidade" foi cunhado por Vilma Piedade e nos apresentado em livro homônimo, publicado pela editora Nós em 2017, e diz respeito à "dor provocada em todas as Mulheres pelo Machismo. Contudo, quando se trata de [Nós], Mulheres Pretas, tem um agravo nessa dor". Dororidade é crescer e se formar pela dor e na dor, nas águas-pranto de Oxum. Dororidade é crescer e se formar pela dor e na dor, mas não é fazê-lo sozinha. Dororidade é uma experiência coletiva, da qual fazem parte as muitas mulheres que nos afagam com seus longos braços-ondas. E são muitas as águas que envolvem Estela.

A mãe "nunca [fazia] parar a vida por causa do pranto. Era uma espécie de milagre". Quando o pai do irmão morreu, a mãe "começou a chorar devagar, como se estivesse economizando a tristeza". Melissa, a amiga melancólica, e Conceição, a madrinha, também choram ao longo da narrativa.

O choro de Estela, porém, é à conta-gotas. Filha de Oxum, ela teria obrigação de chorar, já que "é o pranto que conserta o mundo". Porém, se a felicidade for "mesmo só isso: saber administrar a tristeza", essas lágrimas precisam ser divididas, compartilhadas com as demais. Um rio não se forma sozinho…

Talvez seja isso o mais impressionante no texto. As cachoeiras de mães-irmãs que escorrem são combustível para o amadurecimento de Estela. É na vida coletiva que Estela-sem-Deus se descobre ela mesma divina para as suas. Nesse romance de formação com características particulares, é nas águas da dororidade que Estela (des)aprende a viver.

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