Frederico Vasconcelos

Interesse Público

Frederico Vasconcelos - Frederico Vasconcelos
Frederico Vasconcelos
Descrição de chapéu Folhajus

Resistência às varas de lavagem antecipou dilemas da Lava Jato

Conflito entre juízes do Ceará poderia ter mudado rumo da operação

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em seminário numa universidade de Fortaleza, na semana passada, Sergio Moro elogiou o juiz federal Danilo Fontenelle, titular de vara especializada em lavagem:

"Fomos desbravadores, em 2003, quando os tribunais decidiram criar varas especializadas, porque a Lei de Lavagem estava apenas no papel. Eu usava as sentenças dele como referência", disse Moro.

O evento ocorreu no Uni7 (Centro Universitário 7 de Setembro). Fontenelle é professor daquela universidade e estava no auditório. Na ocasião, o ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro e pré-candidato do Podemos à Presidência fez o lançamento de seu livro "Contra o Sistema da Corrupção". O ex-juiz estava acompanhado do senador Eduardo Girão (Podemos-CE).

Em 2003/2004, Fontenelle enfrentou um caso de resistência às varas de lavagem no Ceará. O episódio colocou em risco a competência de magistrados para julgar crimes de lavagem e delitos contra o Sistema Financeiro Nacional. O impasse chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal).

Em um conflito de competência entre dois juízos cearenses, advogados e opositores às varas especializadas fizeram críticas semelhantes às que seriam usadas, mais de dez anos depois, para esvaziar e enterrar a Operação Lava Jato [o conflito ocorre quando mais de um órgão judiciário entende ser competente para processar e julgar a mesma causa].

Juízes divergem sobre varas especializadas em lavagem
Sergio Moro, ex-juiz da Lava Jato, entre os juízes federais cearenses Augustino Chaves, à esquerda, e Danilo Fontenelle. - JF-CE, /Agência Brasil/Marcelo Camargo e Uni7

​Fontenelle arguíra conflito positivo de competência. Ele e o juiz federal cearense Augustino Chaves disseram-se competentes para julgar um mesmo caso. À época dos fatos, Chaves era juiz de execução penal [ou seja, incompetente para julgar crimes de lavagem].

O Ministério Público Federal havia requerido o bloqueio de bens de Roberto de Barros Leal Pinheiro, dono de uma agência de turismo no Ceará, suspeito de lavagem. Chaves abriu prazo para que o réu "se manifestasse acerca do pedido". O investigado, como previsível, foi "contrário" à medida.

A especialização da 11ª Vara [de Fontenelle] ocorreu em junho de 2003; a denúncia foi recebida por Chaves em setembro daquele ano. Os autos só chegaram a Fontenelle em fevereiro de 2005, "após um ano e quatro meses na 12ª Vara [de Chaves], sem interrogatório do réu".

Segundo a denúncia, Pinheiro usava a agência de viagens e uma empresa de factoring para captação ilegal de empréstimos. Entre 1994 e 1999, foram movimentados US$ 35,7 milhões.

Fontenelle condenou o empresário a 35 anos de prisão e multa de R$ 23 milhões, sob a acusação de realizar operações para dar aparência lícita a dinheiro de origem criminosa. Pinheiro recorreu em liberdade.

"Não visto a camisa de promotor público. Não vou correr atrás de provas (...). Não sou torcedor, sou juiz", disse Chaves, na resposta à representação de Fontenelle.

"A busca e apreensão são medidas de força que só devem ser usadas em casos extremos. O magistrado tem que ter cuidado para não tomar atos de violência sem finalidade", disse Chaves, sobre o fato de não ter autorizado o bloqueio de bens do réu. "Essas medidas geram uma repercussão bombástica. Vai a polícia, com sirene ligada, todo o mundo fica sabendo, a pessoa se aniquila."

"Esperei uma decisão do egrégio tribunal. Não queria me afoitar em atos que posteriormente poderiam ser nulos", disse Chaves.

Augustino Chaves atualmente é assessor da presidência do STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Recorrendo ao Supremo

Em 2006, o advogado José Cândido Lustosa Bittencourt de Albuquerque, defensor de Pinheiro, impetrou habeas corpus no Supremo. O STF deveria definir se a criação das varas especializadas em lavagem de dinheiro viola a Constituição.

Pinheiro pediu ao Supremo que a ação penal retornasse ao titular da 12ª Vara, por violação ao princípio do juiz natural [escolhido por sorteio]. Essa tese já havia sido rejeitada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região e pelo STJ.

"A Constituição garante a todos os cidadãos o direito ao juiz natural, preestabelecido. Não se pode criar juiz de exceção", disse Albuquerque.

"Qualquer pessoa que olhar o perfil dos dois juízes supõe, legitimamente, que aqui ele teria uma pena mais leve", admitiu o juiz Chaves.

O caso foi julgado inicialmente pela 1ª Turma do STF. A ministra Cármen Lúcia (relatora) deferiu o pedido de habeas corpus, sendo acompanhada pelo ministro Ricardo Lewandowski.

A relatora entendeu que a Resolução 314, do Conselho da Justiça Federal, criando as varas especializadas em 2003, violara o princípio do juiz natural. Segundo ela, o conselho "exorbitara de sua competência ao definir atribuições de órgãos judiciais".

O processo contra Pinheiro seria anulado desde a origem se fosse mantido o entendimento de Cármen Lúcia e Lewandowski.

Efeitos em cascata

Os dois votos iniciais provocaram o temor de que o STF abrisse uma brecha para pedidos de anulação de decisões judiciais nos processos do mensalão, Banestado, Banco Santos, Farol da Colina e nas ações penais contra os ex-prefeitos Paulo Maluf e Celso Pitta, entre outros.

"Os processos correm o risco de ser anulados com base numa argumentação um pouco abstrata", disse Sergio Moro, na ocasião.

"O precedente servirá para que processos relevantes sejam anulados", disse o juiz Jorge Gustavo Macedo Costa, que julgou a primeira fase do mensalão em Belo Horizonte. Costa temia que o Brasil viesse a ser visto como "país fértil à lavagem".

"A decisão pode causar a nulidade de vários processos", disse o juiz Walter Nunes da Silva Júnior, então presidente da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil).

"Esse voto [da relatora] é um erro total", disse o desembargador aposentado Wálter Maierovitch, ex-titular da Secretaria Nacional Antidrogas. "A resolução do Conselho da Justiça Federal não atenta a Constituição. Se tirarem do CJF essa atribuição, teremos uma Justiça sem mobilidade para acompanhar o crime organizado", afirmou Maierovitch.

Em maio de 2007, o ministro Marco Aurélio suscitou questão de ordem e a 1ª Turma decidiu levar o habeas corpus a julgamento pelo Tribunal Pleno. Em maio de 2008, por dez votos a um, vencido Marco Aurélio, o STF fixou a competência da 11ª Vara [de Fontenelle] para o julgamento de Roberto de Barros Leal Pinheiro. A Sessão Plenária foi presidida pelo ministro Gilmar Mendes.

Magistrados divergem

Nos debates sobre a criação do juiz de garantias, também ficaram evidentes as posições opostas de Augustino Chaves e Sergio Moro. O juiz de garantias ficaria responsável por acompanhar apenas a fase de inquéritos. Outro juiz seria responsável pelo processo depois do oferecimento da denúncia.

Em dezembro de 2019, Bolsonaro não atendeu um pedido do então ministro da Justiça e sancionou a lei do pacote anticrime [apresentado por Moro] sem vetar a criação do juiz de garantias.

Disse Moro: "Perde-se na fase da ação penal todo o conhecimento que foi acumulado na fase de investigação, sendo necessário recomeçar do zero".

Disse Chaves: "O juiz que autoriza medidas fortes, busca e apreensão e prisão preventiva, muito raramente muda de opinião. (...) Há juízes que se apaixonam, confundem-se com a torcida da acusação, viram algozes. Mesmo os mais serenos tendem a ficar algo contaminados".

Varas especializadas

A criação das varas especializadas em julgar crimes de lavagem de dinheiro e delitos contra o Sistema Financeiro Nacional foi autorizada pelo Conselho da Justiça Federal em 2003. O CJF é dirigido pelo presidente do STJ e dele fazem parte, entre outros, o corregedor-geral da Justiça Federal e os presidentes dos Tribunais Regionais Federais.

Ministro aposentado do STJ Gilson Dipp, no Conselho da Justiça Federal
Ministro aposentado Gilson Dipp, autor de parecer sobre colaboração premiada de Alberto Youssef na Operação Lava Jato - Sérgio Amaral/CJF

O principal mentor dessas varas foi o ministro aposentado do STJ Gilson Dipp, ex-corregedor nacional de Justiça. Dipp alertara para a falta de capacitação dos juízes brasileiros para acompanhar inquéritos e julgamentos de delitos financeiros.

Sergio Moro estava no primeiro grupo de juízes que se prepararam para julgar crimes financeiros, junto com Fausto De Sanctis, Jorge Gustavo Macedo Costa, Abel Fernandes Gomes, Gerson Godinho Costa, Cassio Granzinolim e Danilo Fontenelle.

Em 2012, quando surgiram comentários sobre a extinção das varas especializadas Sergio Moro comentou neste Blog: "Se tem algo que a AP 470 (vulgo Mensalão) ensinou aos operadores do direito é que existem casos criminais complexos que demandam foco de atenção e de recursos, ainda que em prejuízo de processos corriqueiros. Mais vale um bom processo contra um grande lavador de dinheiro sujo do que mil contra batedores de carteira. Daí a óbvia necessidade de existirem unidades jurisdicionais especializadas e focadas em casos criminais mais complexos".

Avaliação questionada

Em outubro de 2014, em entrevista à Folha, Dipp afirmou que a Operação Lava Jato seria "um exemplo para todos os juízes brasileiros".

Dipp criticou os advogados que alegaram motivos éticos para renunciar à defesa de réus colaboradores: "Existe ética em organizações criminosas?"

Segundo Dipp avaliou naquela ocasião, a Lava Jato "produziu a maior recuperação de valores da Justiça brasileira em todos os tempos. É importante, pois investiga fatos envolvendo a maior empresa pública brasileira [Petrobras]. Talvez seja o maior desvio de dinheiro público admitido por um investigado desde o caso Banestado".

Em 2015, o ex-corregedor surpreendeu ao sustentar a ilegalidade do acordo de delação premiada de Alberto Youssef na Operação Lava Jato. Em entrevista exclusiva à jornalista Maria Cristina Fernandes, do Valor, Moro revelou que Dipp foi um dos três juízes que motivaram sua atuação na Lava Jato, ao lado de Giovanni Falcone e Earl Warren.

Ela lembrou que Dipp, um dos principais artífices das varas de crimes financeiros, foi "um dos juízes mais temidos pelos escritórios de advocacia do país".

Maria Cristina revelou a reação de Moro: "O ministro aposentado do STJ foi preservado no oratório do comandante da Lava Jato a despeito do seu parecer contra a espinha dorsal da operação, a delação do doleiro Alberto Youssef".

Moro disse que "o parecer não é do juiz, mas do advogado", registrou a jornalista.

Desgaste de Moro e Deltan

Segundo o site Migalhas, o parecer de Dipp foi solicitado pelo advogado José Luis Oliveira Lima. O criminalista havia questionado a condição da colaboração de um agente [Youssef] que tivera anteriormente um acordo de colaboração premiada rescindido ou quebrado [no caso Banestado].

Dipp concluiu que a colaboração de Youssef na Lava Jato era "imprestável por ausência de requisito objetivo - a credibilidade do colaborador - e requisito formal - omissão de informações importantes nos termos do acordo".

"Por consequência, todos os atos e provas delas advindas são imprestáveis."

Em março de 2016, o ex-Procurador-Geral da República Claudio Fonteles recomendou moderação a procuradores da Lava Jato. Considerou "inadmissível (...) compelir testemunha, indiciado ou réu a prestar depoimento à margem do devido processo legal".

Em 2019, Fonteles defendeu a "plena investigação" de mensagens divulgadas pelo site The Intercept Brasil que indicavam colaboração de Moro e Deltan na Lava Jato: "O membro do MP não pode, por qualquer meio, mancomunar-se com o julgador".

O editor deste blog revelou na Folha que o CNJ manteve sem julgamento, por mais de dois anos, recursos de reclamações disciplinares contra Moro que poderiam tê-lo afastado dos processos da Lava Jato.

Decisões revistas

Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski em sessões do STF
Ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal - SCO/STF - Divulgação

Em 2008, em sessão presidida por Gilmar Mendes, o STF indeferiu o pedido de habeas corpus de Roberto de Barros Leal Pinheiro. O dono da agência de turismo do Ceará pretendia ser julgado pelo juiz Augustino Chaves. Cármen Lúcia (relatora) e Ricardo Lewandowski reviram o entendimento anterior.

Naquele mesmo ano, o doleiro Rubens Catenacci pediu ao STF anulação da sentença em que Moro o condenara a nove anos de prisão no caso Banestado. Ele foi denunciado por remeter ilegalmente meio bilhão de reais ao exterior. Alegou que o juiz era parcial e "prendia demais".

No início da Lava Jato, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello tentaram conter Moro com base naquele pedido de Catenacci. Determinaram ao CNJ e ao TRF-4 apurar se o juiz cometera falta discipinar. Os dois órgãos informaram que já haviam rejeitado as alegações do doleiro.

Gilmar havia criticado as condutas "censuráveis" e "desastradas" de Moro, mas concluíra que "não se pode confundir excessos com parcialidade".

Em junho de 2021, o STF jogou a pá de cal na Lava Jato ao decidir que Moro atuou com parcialidade no processo do ex-presidente Lula envolvendo o triplex no Guarujá. O habeas corpus de Catenacci foi usado pela defesa de Lula como precedente.

Ao votar, Mendes não registrou que já havia afastado a hipótese de parcialidade do juiz no caso do doleiro.

O então decano, Celso de Mello, e o atual presidente do STF, Luiz Fux, acompanharam o relator, ministro Edson Fachin, e votaram contra a suspeição de Moro.

Em março de 2021, a ministra Cármen Lúcia assim justificara sua mudança de voto:

"Todos têm o direito de ter um julgamento justo por um juiz e um tribunal imparciais, e, principalmente, no qual ele possa comprovar todos os comportamentos que foram aos poucos consolidando o quadro fundamental, um cenário diverso que veio a ser desvendado nesse processo, para se demonstrar a quebra de um direito de um paciente".

Em setembro de 2020, Mendes também mencionara seu novo entendimento sobre a tentativa de Catenacci.

"Naquele momento afirmei: ‘não é possível confundir excessos com parcialidade’. Contudo, agora, depois de o tempo demonstrar cada vez mais traços da realidade que antes não se evidenciava, os excessos eram marcantes na atuação do magistrado de primeiro grau exatamente em razão de suas condutas tendencialmente parciais."

Esses fatos foram assim resumidos no voto-vista do ministro no caso do tríplex:

"Infelizmente, a experiência acumulada durante todos esses anos nos mostra que os órgãos de controle da atuação da magistratura nacional falharam em conter os primeiros arroubos de abusos do magistrado".

Epitáfio da Lava Jato

Ainda em 2009, diante de reviravoltas em prisões decretadas pela justiça federal contra acusados de crimes de colarinho branco, Moro comentou: "A percepção geral, é a de que não vale mais a pena abrir processos que tenham por objeto crimes de colarinho branco. O melhor é investigar e abrir processos somente em relação ao tráfico de drogas e lavagem dela decorrente, para os quais o sistema ainda é eficiente, pois o resto não vale a pena".

Recentemente foi publicado o balanço semestral do Gaeco no Paraná (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado no âmbito do MPF). Informativo a respeito ressalta o combate ao tráfico. No rodapé, diz que não evoluíram "alguns casos derivados da denominada operação Lava Jato".

Os Gaecos federais foram formalizados em 2020, no primeiro mandato do PGR Augusto Aras, como parte da estratégia de esvaziamento das forças-tarefas da Lava Jato.

Eis alguns trechos da nota publicada pelo MPF/PR:

- Continuamos a avançar em medidas investigativas voltadas a identificar e delimitar os diversos atos de lavagem praticados ainda não denunciados, de modo a assegurar a responsabilização de todos os envolvidos.

- O Gaeco MPF/PR ainda se dedicou ao desenvolvimento de diversas outras investigações envolvendo crimes praticados por organizações criminosas, apesar desses casos ainda não terem evoluído para as suas fases ostensivas, cabendo destacar, dentre tais apurações em andamento, o auxílio que vem sendo prestado a alguns casos derivados da denominada operação Lava Jato.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.