Frederico Vasconcelos

Interesse Público

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Descrição de chapéu Folhajus

Quando o sigilo cerceia o direito de defesa de um promotor

Helder Barbalho usa jornal da família e acusa Gilberto Martins em caso sigiloso

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O promotor de justiça militar Gilberto Valente Martins, 60, ex-procurador geral de Justiça do Pará, tem sido alvo de acusações do governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), mas não pode se defender publicamente.

Martins ajuizou três ações de improbidade contra Helder e vários inquéritos civis públicos contra membros do governo do Pará. O governador ofereceu reclamação ao CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público). Os procedimentos disciplinares contra Martins estão sob sigilo.

O governador tem usado o Diário do Pará, jornal da família, para se defender e atacar o promotor que se mantém em silêncio.

Governador do Pará, Helder Barbalho, e ex-procurador geral de Justiça Gilberto Valente Martins geral
Rinaldo Reis Lima, corregedor nacional do Ministério Público, Helder Barbalho, governador do Pará, e Gilberto Valente Martins, ex-procurador geral de Justiça do Pará - Agência Senado e Agência CNJ

Respiradores e bloqueios

Em fevereiro de 2021, a Folha revelou que a Polícia Federal pediu o indiciamento de Helder Barbalho, alvo de três operações para investigar as suspeitas de desvios de dinheiro público em contratos da área de saúde em 2020. O pedido refere-se à compra de respiradores pulmonares para tratamento da Covid.

Helder acusa Martins de vazar informações sigilosas de um inquérito criminal relatado pelo ministro Francisco Falcão, no STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Martins usou peças de investigações que não estavam mais sob sigilo.

Com relação à primeira ação de improbidade, o juiz federal Rubens Rollo D'Oliveira determinou o levantamento do sigilo dos autos no dia 12 de maio de 2020, antes de a investigação subir para o STJ.

O juiz federal substituto Gilson Jader Gonçalves Vieira Filho determinou o levantamento do sigilo de dois outros inquéritos no dia 29 de janeiro de 2021, pois não havia diligências pendentes de cumprimento.

As ações de improbidade foram ajuizadas por Martins nos dias 31 de março de 2021 e 9 de abril de 2021.

Antes de protocolar as ações, o promotor consultou o delegado da Polícia Federal encarregado das diligências, que confirmou o cumprimento das medidas cautelares.

Falcão não vislumbrou violação de sigilo ou irregularidade. Considerou que houve compartilhamento das provas produzidas, e que não há sigilo no trâmite das ações civis públicas.

O bloqueio de bens de Helder foi requerido pela subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo.

Considerada braço-direito do procurador-geral da República, Augusto Aras, Lindôra teve atuação destacada no enterro das forças-tarefas da Lava Jato.

Sobre as investigações no Pará, a subprocuradora registrou que "as ilicitudes em questão passam claramente pelo crivo do governador Helder Barbalho".

Falcão autorizou o bloqueio de R$ 25 milhões do governador e de outros sete envolvidos. Houve duas diligências de busca e apreensão, na casa e no gabinete do governador do Pará.

Em decisão que se tornou pública em setembro de 2020, Falcão afirmou que a atuação de Helder "se mostrou essencial para o sucesso da empreitada criminosa envolvendo as Organizações Sociais na área de saúde".

O ministro identificou "robustos indícios da anuência e participação do Chefe do Poder Executivo Estadual no esquema criminoso". [Link para a íntegra da decisão de Falcão foi publicado em 29.set.2020 no site do Consultor Jurídico].

Um ano e meio depois do início das investigações, a Procuradoria-Geral da República não denunciou o governador do Pará.

Precipitação impressa

No dia 7 de setembro de 2021, o Diário do Pará, de propriedade do senador Jader Barbalho (MDB), pai de Helder, divulgou "a abertura dois Processos Administrativos Disciplinares (PADs)" contra Martins. Ainda não havia PADs instaurados.

O jornal da família Barbalho afirmou:

"As penas sugeridas pelo corregedor nacional, Rinaldo Reis Lima, são de três sanções de Censura, nos dois processos. Mas advogados ouvidos pelo DIÁRIO dizem que Gilberto pode acabar também processado por improbidade administrativa e até na esfera criminal, por causa da divulgação dos documentos".

Ainda segundo o jornal:

"Os PADs foram abertos a partir das Reclamações Disciplinares 1.00582/2021-57 e 1.00768/2021-60. O CNMP constatou indícios de que Gilberto descumpriu deveres funcionais previstos na Lei Orgânica do Ministério Público do Pará (MP-PA). As investigações se encontram sob sigilo e o DIÁRIO não conseguiu acesso ao conteúdo, mas confirmou de que se trata de Gilberto. Os fatos estariam relacionados à divulgação à imprensa do conteúdo de processos que se encontravam sob segredo de Justiça."

No dia seguinte, foi divulgada na versão online do Diário do Pará foto de Martins num shopping center paulista. Martins estava em licença médica para fazer exames em São Paulo. O jornal de Barbalho sugeriu que a licença seria uma manobra "para evitar ser notificado em processo de quebra de sigilo judicial".

A Associação do Ministério Público do Pará divulgou nota de desagravo a Martins, "que teve sua vida privada devassada". Informou que "o plenário do CNMP ainda sequer apreciou a documentação apresentada para fins de instauração de Procedimento Administrativo Disciplinar, logo, inexiste procedimento formalizado" no CNMP em desfavor do promotor.

Em outubro de 2021, o jornal da família Barbalho afirmou que Martins "travou uma guerra de acusações contra Helder", eleito governador em 2018 pelo PMDB, e agiu "de maneira político-partidária, em favor do PSDB".

Segundo o veículo, Martins acusou Helder de superfaturar bombas de infusão adquiridas para o combate à pandemia, e nada disse sobre as bombas superfaturadas compradas pelo ex-secretário municipal de Saúde de Belém, Sérgio Amorim.

Amorim é cunhado de Martins.

Pressões no Senado

O confronto no Pará não é um episódio isolado. Omisso em relação ao que o presidente Jair Bolsonaro faz ou desfaz, Augusto Aras, agiu com mão pesada para desmontar as forças-tarefas da Lava Jato, inibindo a reação de procuradores e promotores.

Em outubro de 2021, a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República) especulava sobre a demora do Senado para aprovar as indicações para o CNMP. Segundo reportagem de Chico Otávio, no jornal O Globo, a recondução de Rinaldo Reis estava na fila de espera.

"Ninguém me disse oficialmente, mas se comenta que, enquanto o CNMP não votar as questões do Pará e do Rio de Janeiro, os nomes não serão aprovados", afirmou o presidente da ANPR, Ubiratan Cazetta.

Era uma referência a reclamações disciplinares abertas no CNMP contra membros do MP que investigaram pessoas ligadas ao Senado --ambas sob a relatoria de Rinaldo-- com possibilidade de penas que vão de censura à demissão do serviço público.

No primeiro caso, Rinaldo havia pedido a demissão de onze procuradores da força-tarefa do Rio, acusados de vazamento de informações sigilosas. Era uma revanche dos senadores do MDB Romero Jucá e Edison Lobão.

O MPF divulgara no portal da assessoria de comunicação da instituição que eles haviam sido denunciados, acusados de participação em suposto esquema de propinas na construção da usina nuclear de Angra 3, no Rio.

Os fatos já eram conhecidos. Haviam sido publicados na imprensa, segundo o MPF, "em razão de denúncia oferecida pela Procuradoria-Geral da República, em relação a outros denunciados".

Um manifesto de 1.500 operadores do direito viu na iniciativa do corregedor nacional a "tentativa de calar o Ministério Público". Na véspera, cerca de 40 subprocuradores-gerais da República, que ocupam o cargo mais elevado da carreira, publicaram manifesto em solidariedade aos membros do MPF do Rio de Janeiro.

Quando a punição foi anunciada, os procuradores da força-tarefa divulgaram nota sustentando que o pedido de demissão "tem efeito deletério que transcende a injustiça do caso concreto, devendo ser acompanhado de perto pela sociedade e por todo Ministério Público brasileiro".

No segundo caso, a reportagem lembrava que Rinaldo também era o relator de reclamações contra o promotor Gilberto Martins.

Na ocasião, circulou a informação de que a recondução de Rinaldo no CNMP estava condicionada à instauração do PAD contra Martins, o que se atribuía a uma imposição do PMDB capitaneada pelo senador Jader Barbalho.

Dois corregedores

O corregedor nacional do CNMP Reinaldo Reis Lima é promotor de Justiça do Ministério Público do Rio Grande Norte. Assim como Martins, foi procurador-geral de Justiça. Presidiu a Associação do Ministério Público do Rio Grande do Norte e o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais.

Gilberto Martins foi corregedor interino do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) na gestão do corregedor nacional Francisco Falcão. Foi também ouvidor do CNJ.

Substituindo Falcão na corregedoria do CNJ, Martins fez correição que resultou na aposentadoria compulsória do desembargador Constantino Augusto Tork Brahuna, ex-corregedor geral de Justiça do Amapá.

Brahuna foi acusado, entre outras irregularidades, de vazar informações de processos sigilosos, entre os quais apuração sobre lavagem de dinheiro que tinham o seu filho entre os investigados.

Martins realizou correições e inspeções em quatro tribunais estaduais e no Distrito Federal. Presidiu o grupo de trabalho sobre improbidade e corrupção. Foi relator de vários processos disciplinares envolvendo juízes e desembargadores.

Corregedor interino, fez a oitiva, em Salvador, de 16 testemunhas arroladas pela defesa dos desembargadores Mário Alberto Hirs e Telma Laura Britto, ex-presidentes do Tribunal de Justiça da Bahia.

Hirs e Britto foram afastados pelo CNJ, em novembro de 2013. O fato foi apresentado como um dos pontos altos da gestão de Falcão na corregedoria nacional.

Antes de tomar posse no CNJ, Martins foi responsável pelas ações penais que resultaram na aposentadoria compulsória de duas desembargadoras do Pará, acusadas em investigação sobre um golpe bilionário contra o Banco do Brasil.

Combate à corrupção

Gilberto Martins foi quem idealizou a meta de combate à corrupção e à improbidade administrativa do Poder Judiciário. Essa meta foi fixada em novembro de 2012, em encontro que reuniu presidentes de 91 tribunais.

Foi um dos sete conselheiros que protocolaram ofício dirigido ao ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do CNJ, preocupados com a redução dos julgamentos no colegiado.

Em entrevista à Folha, em setembro de 2015, Martins disse que a questão disciplinar não tinha prioridade na gestão de Lewandowski. Vários processos relevantes com votos dos relatores aguardavam, havia meses, a decisão do colegiado.

"Eu encerrei o mandato com 38 processos com votos e com pedidos de pauta. São incluídos na pauta temas 'amenos', deixando-se na 'fila' matérias relevantes ou 'incômodas' para os tribunais", afirmou Martins. Ele disse que mantinha relacionamento muito respeitoso com o ministro, que, em casos pontuais, defendeu medidas que ele tomara.

Formação militar

Em abril de 2021, Martins recebeu a "Medalha do Exército Brasileiro", condecoração também outorgada, entre outros, ao presidente do STF, ministro Luiz Fux, e ao PGR Augusto Aras.

Martins elogiou o convite de Dias Toffoli ao general Fernando Azevedo, ex-chefe do Estado-Maior do Exército, para assessorá-lo na presidência do STF. "Os militares das Forças Armadas são altamente qualificados. Certamente, um militar que chega ao generalato é bem formado. Na área da segurança institucional, na atividade de inteligência, são os melhores", disse.

Em novembro de 2015, o Conselho Nacional dos Procuradores Gerais de Justiça homenageou Martins pelos dois mandatos como conselheiro do CNJ.

OUTRO LADO

O governador do Pará, Helder Barbalho, divulgou a seguinte nota, em novembro de 2020, sobre o ajuizamento da ação de improbidade e outras medidas tomadas por Martins:

"O Procurador-Geral de Justiça nomeado pelo ex-governador Simão Jatene por duas vezes, extrapola suas funções e tenta criar um factóide político-eleitoral ao fazer um novo ataque que nada tem a ver com Justiça.

Não houve prejuízo financeiro ao Estado.

Atuei com firmeza para que a empresa responsável pelos respiradores devolvesse todo o recurso aos cofres do Estado. Atuei com firmeza para suspender a compra das cestas básicas. Sempre defendi os recursos públicos e estou provando isso na Justiça.

O Procurador revela dois pesos e duas medidas ao ignorar as acusações da polícia de corrupção sobre seu cunhado, secretário de Saúde do atual Prefeito de Belém.

Mais ainda: não tem isenção necessária para atuação no cargo, já que sua esposa é funcionária da Prefeitura de Belém e foi cedida pelo prefeito ao Tribunal de Contas dos Municípios.

Tal aparelhamento do Ministério Público Estadual é inédito, inadmissível e nocivo à democracia e independência entre os poderes."

Consultada pelo blog, a assessoria de imprensa do CNMP respondeu que, como o caso está sob sigilo, "não tem informações a respeito".

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