Guia Negro

Afroturismo, cultura negra e movimentos

Guia Negro - Guilherme Soares Dias
Guilherme Soares Dias

Do depósito da cozinha para a coluna no jornal: como realizar sonhos

Jornadas de pessoas negras costumam ser mais longas e complexas para ocupar lugares quase naturais para os brancos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Guilherme Soares Dias
São Paulo

A primeira vez que li a Folha foi no início dos anos 1990. Minha mãe, Celina, trabalhava como empregada doméstica e, pelo menos uma vez por semana, eu ficava com ela no trabalho no horário contrário ao da escola. Meu lugar no "serviço" da minha mãe era demarcado "da cozinha para lá", como bem pontua a personagem da patroa, Bárbara (Karine Teles), no filme "Que Horas ela Volta", para a empregada Val (Regina Casé). Ao lado da pia, onde minha mãe cortava alimentos, tinha um depósito embaixo da escada principal da casa. Lá ficavam os jornais velhos e ali, naquele pequeno espaço, eu me transportava para outro mundo lendo as sessões infantis de publicações como Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e Veja.

Essa viagem nas letras era a fuga necessária daquele cubículo, onde eu não podia brincar, nem ser notado. O cheiro daquela cozinha ainda faz parte da minha memória. Os anos passaram e eu continuei frequentando esse espaço e tendo acesso a esses jornais antigos. Era o passaporte para o mundo de um menino que crescia na periferia de Campo Grande (MS). Quando veio o momento do vestibular, não tinha dúvidas de que queria fazer jornalismo. A Folha me acompanhava como leitura e agora também como lugar que almejava trabalhar.

Trabalhei na imprensa sul-mato-grossense e em 2007 fiz a seleção para o trainee da Folha. A minha primeira visita a São Paulo era para cobrir o Salão de Turismo e coincidia com o período da prova que dava acesso ao jornal. Estive na redação na alameda Barão de Limeira, e me vi trabalhando nela, em meio a mesas cheias de jornais antigos, como se apresentavam na época. Não passei para a próxima etapa, mas o sonho estava encrustado.

Mulher, com óculos e uniforme de emrpegada doméstica, falando no celular, em mesa com xícaras e garrafa térmica de café
Regina Casé em cena como a protagonista de "Que Horas Ela Volta?" - Divulgação

Mal sabia que aquela Folha em que eu queria entrar não valorizaria o profissional que sou. Pouco diversa, a redação tinha (e ainda tem) majoritariamente jornalistas brancos, do Sudeste, classe média e com intercâmbio no currículo. Para além dessa solidão, de me tornar um dos poucos negros e periféricos daquele espaço, as pautas sociais e humanizadas que eu gostava de escrever não tinham o mesmo prestígio dos furos e questões políticas que costumavam vender mais jornal. A questão racial, então, nem era considerada pauta.

Em 2009 decidi mudar para a capital paulista para fazer especialização em Jornalismo Literário. A primeira vaga de repórter que surgiu foi em economia. Trabalhei na Agência Estado, no Valor Econômico, mas nunca na Folha, de quem eu me tornara vizinho. Cheguei a fazer freelas no extinto jornal Agora.

Em 2016 deixei os empregos formais e fiz um mochilão de um ano. Estava cansado de só me dedicar ao trabalho e estudo. Percebi que tinha um monte de gente (branca) fazendo o mesmo e poucas pessoas pretas no meu caminho. Além disso, eu passava por situações que não via os produtores de conteúdo de viagem falando, pelo fato deles serem brancos e nunca terem sido revistados no meio da rua em Veneza, por exemplo.

No retorno desse período sabático, comecei a escrever sobre casos de racismo no turismo, mas também sobre a importância de conhecermos mais lugares de cultura e história negra. Tudo para incentivar que mais negros viajem, e não só trabalhem e resistam, além de também gerar interesse para que todas as pessoas possam conhecer mais da cultura negra, gastronomia da diáspora africana, lugares e personagens negros pouco valorizados por narrativas eurocentradas que o turismo está acostumado.

Meu trabalho ganhou espaço aqui na Folha quando a polícia seguiu a Caminhada São Paulo Negra, que idealizei e conduzo ao lado de outros parceiros, como Heitor Salatiel e Debora Pinheiro. O Zeca Camargo escreveu uma coluna que me emocionou e até enquadrei. A Dani Avelar registrou em uma página inteira essa nova possibilidade de conhecer as cidades, denominada de afroturismo. Mesmo sendo importantes, essas matérias ainda eram de pessoas brancas narrando as histórias de pessoas negras, como eu.

Queria eu mesmo escrever sobre o assunto nesse jornal. Quando a Folha criou a editoria de Diversidade, achei que seria minha chance de contribuir com meu trabalho. Tentei ser colunista. Mas em 2019 a resposta que recebi era de que outra coluna já estrearia, o Quadro Negro. Era como se a negritude pudesse ser resumida numa única visão. Resignado, tentei o mesmo espaço em outros veículos e até consegui com algumas ressalvas.

Com o passar do tempo, mandei mais uns dois emails nessa vontade de ser colunista do jornal. Até que em 2021 li uma matéria que dizia que o turismo de Salvador renascia ancorado em novos hotéis de luxo que se instalavam no entorno do Pelourinho. Nada mais elitista e eurocêntrico, já que a cidade tem vários novos empreendimentos negros que estão mudando seu cenário cultural e turístico. Escrevi um texto-resposta que imaginei ser a pá de cal no meu sonho de aqui escrever, e continuei meu trabalho sem mais pensar nisso.

Até que, há cerca de dois meses, recebi uma ligação da Flavia Lima, atual editora de Diversidade, me convidando para ser colunista. Nem acreditei. Comentei com ela da minha vontade antiga, misturada com felicidade e de como era bom ver que o mundo mudou nesses últimos dez anos. Flavia rebateu dizendo que essa mudança é mais recente, dos últimos três anos. E lembramos que estamos avançando, mas ainda há muito o que evoluir. Até porque o antirracismo não é uma ação pontual, e sim uma série de estratégias contínuas que também passam por remunerar de maneira adequada quem contribui com sua escrita e conhecimentos (o que ainda não ocorre).

E, lembrando, essa história não é sobre meritocracia ou superação (que os brancos adoram), mas sobre como a jornada de pessoas negras costuma ser mais longa e complexa para ocupar lugares quase naturais para os brancos, como viajar e ter um blog num grande jornal.

No meu longo caminho até aqui, muitas pessoas participaram dessa caminhada. Por isso, não chego só e vamos falar de viagens sob os mais diferentes aspectos, da forma mais diversa possível. Ainda não vencemos o racismo estrutural, mas, hoje, avançamos nessa batalha. A Folha, finalmente, ganha seu Guia Negro. E ter um preto, periférico, falando sobre diversidade no turismo no maior jornal do país, é a realização de um sonho. E isso não é pouco!

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.