Guia Negro

Afroturismo, cultura negra e movimentos

Guia Negro - Guilherme Soares Dias
Guilherme Soares Dias

O que você aprendeu com a sua avó?

Não importa a distância do trajeto, a viagem será sempre tão grandiosa quanto a cabeça de uma criança pode imaginar

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Guilherme Soares Dias
São Paulo

Não importa com quem e em que lugar do mundo eu esteja, as viagens de trem serão sempre com a minha avó de Campo Grande para Aquidauana.

Não importa o que eu leve de matula, a comida do caminho será sempre uma chipa que se esfarela e o vento traz de volta para nossos rostos provocando risadas.

Não importa a distância do trajeto, a viagem será sempre tão grandiosa quanto a cabeça de uma criança pode imaginar.

Não importa quanto tempo passe, eu serei sempre aquele guri sorridente e curioso, que curte ver as paisagens se sucedendo na janela e ama a sensação de liberdade que os deslocamentos provocam.

Minha viagem será sempre essa.

Texto do meu livro "Dias pela Estrada", em que resumo o que aprendi com a minha avó, Eroldina Soares: a viajar. Tiningue, como era conhecida, teve treze irmãos, viu a mãe falecer durante um parto, quando tinha 11 anos, seis meses depois perdeu o pai, que foi morto por um desafeto. Os irmãos terminaram de ser criados pelos dois mais velhos, Lúcia e Luiz, e viviam na fronteira do Brasil com o Paraguai, numa Ilha chamada Formosa. De lá migraram para Porto Murtinho (MS). Lá Eroldina se casou, teve duas filhas, e enfrentou a fome depois que o marido morreu, lavando roupas no Rio Paraguai.

Mudou para Campo Grande em busca de oportunidades melhores. Foi empregada doméstica e se aposentou. Nunca deixou de viajar para visitar os irmãos que estavam espalhados pelo Mato Grosso do Sul. Levava consigo seu sorriso peculiar, a prontidão para dançar, os ingredientes para fazer seus deliciosos bolos e eu, que cresci tendo ela como espelho. Mesmo com uma vida dura, nunca deixou de sorrir e nem de sonhar. Conquistou a casa própria aos 60 anos, enfrentou um câncer de mama e sonhava em visitar o Beto Carreiro (SC).

Três mulheres dançando com braços levantados
Eroldina Soares, ao centro, dançando ao lado irmã Lucia (à esquerda) e da cunhada Abadia (a direita) - Acervo pessoal

Jovial, desenvolveu Alzheimer a partir dos 75 anos e, com isso, foi se esquecendo de quase tudo. Menos de Porto Murtinho, da dança e de alguns dos familiares, como eu. No ano passado teve uma pneumonia e sem o atendimento adequado no sistema de saúde de Campo Grande faleceu. Na última visita ao hospital prometi que não deixaríamos que a esquecessem. Afinal, como diz Nelson Mandela, um homem pode morrer duas vezes: uma é a morte física, pela qual todos vamos passar, outra é quando deixam de falar dele.

Fazia aniversário em 25 de julho, em que também se comemora o dia da mulher latino-americana e caribenha. Leonina, Eroldina amava o carnaval e foi enterrada ao som da marchinha "O teu cabelo não nega", que tocava aleatoriamente ao lado do cemitério, que parecia ter sido contratada para aquele momento de despedida (ainda que, eu mesmo jamais deixaria uma música com um quê de racista tocar, mas achamos adequada pela alegria que representava).

Hoje Eroldina Soares, símbolo anônimo de uma geração que migrou do campo para a cidade e que viveu num canto pouco conhecido do Brasil, está no jornal mais lido do país – e estará onde eu estiver. Minha avó será sempre lembrada como uma mulher que dançou até o fim e que amava viajar. Viva as mulheres negras, latino-americanas e caribenhas, viva as viajantes negras, viva as avós. Viva Eroldina Soares!

Dias pela Estrada

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