Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Cego sozinho na rua não deveria ser nem herói, nem alvo de piedade

Profissionais especializados em orientação e mobilidade auxiliam na busca por independência

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Por uma soma de falta de prática com a redução da minha visão depois de quase dois anos de distanciamento social, senti mais dificuldades nas primeiras caminhadas mais longas sozinho desde o início da pandemia.

O desafio que me chamou mais atenção foi a localização de portas de prédios, estabelecimentos comerciais ou lojas. Nada demais, que um pedido de ajuda a alguém na rua não pudesse resolver. Mas, com receio de não encontrar logo o destino, acabei trocando alguns trajetos curtos a pé por viagens com motorista de aplicativo.

Nunca tive dúvidas de que eu andaria com independência na rua, mesmo que tenha demorado um pouco mais do que meus amigos. Peguei um ônibus desacompanhado pela primeira vez aos 18 anos. Penso que contribuiu para essa certeza a minha perda visual ter acontecido lentamente e eu não ter me preocupado muito com ela por um bom tempo. Com isso, mesmo já tendo um diagnóstico desde criança, demorei a pensar que algumas atividades poderiam ser mais difíceis para mim e sempre me imaginei fazendo tudo o que os outros faziam. Além disso, pude aprender a usar a bengala e criar meus mecanismos de orientação ainda conseguindo usar a visão residual como um recurso bastante útil para me orientar.

Outras vantagens que tive foram uma família que conseguiu o equilíbrio delicado entre cuidar de perto, mas respeitar e preparar o terreno para que eu realizasse meu desejo de liberdade e o privilégio de ter contato com uma profissional excepcional que me deu a orientação t~écnica e emocional necessária.

Mais de uma década depois dos meus primeiros passos e agora dependendo muito mais de outros sentidos do que da visão, comecei a me questionar se eu não estaria mais no lado da exceção do que da regra, por uma combinação específica de oportunidades e determinação que nem sempre se repetem. Se eu tivesse ficado cego em outras condições, eu teria a mesma autonomia?

Ampliando a pergunta, será que a maioria das pessoas com deficiência visual anda na rua sozinha?

Penso que não exista uma boa pesquisa investigando em nível nacional a autonomia dos cegos. A maioria dos que tenho contato faz suas caminhadas, sim. Mas a amostra deve estar muito enviesada. Afinal, se a pessoa tem limitações para andar com independência, sua atividade social pode ser mais restrita. Naturalmente é bem mais improvável que essa pessoa esteja em uma apresentação teatral com audiodescrição ou outro evento que junta gente com deficiência visual em que eu poderia conhecê-la. Também é preciso considerar que conheço principalmente pessoas da classe média de São Paulo, onde a escassez de professores de orientação e mobilidade e organizações especializadas na reabilitação de pessoas com deficiência é menor do que em outras regiões do país.

Mesmo assim, no meu círculo de amigos, há gente bastante preparada em seus estudos, que realiza muito bem seu trabalho e que anda sempre ao lado de parente ou amigo.

Já censurei e cobrei pessoas assim, que nunca saíram sozinhas nem para tomar um sorvete na esquina de casa.

Foto mostra um homem de calças jeans e camiseta descendo uma escadaria de estação de metrô na China; ele segura uma bengala que ~e branca em sua parte central e vermelha nas pontas - Jade GAO - 7.aug.2021/AFP

Mas será que é justo esperar que todos estejam dispostos a encarar de olhos fechados as calçadas esburacadas, com lixeiras suspensas e orelhões para nos machucar, pisos táteis que não levam a lugar nenhum e onde há uma ausência absoluta de semáforos sonoros? Será que todos estão dispostos e prontos para ficar com o ouvido atento para ver se escutam passos ou conversas próximas para chamar alguém que lhe indique a entrada do local que procuram? Sem falar nos medos que as pessoas que enxergam também têm, do furto, do assalto, das várias formas de violência, em especial as contra a mulher.

Além dos desafios para quem não vê, como ficam seus familiares? Como administrar o medo de que algo de mau aconteça? O que fazer com a culpa e a vergonha, porque todos vão pensar que você não cuidou direito, no caso de um acidente?

Ou seja, a pessoa que não vê tem a sua frente uma ponte balançando sobre o abismo e dizemos para ela e sua família que é preciso ter a coragem de atravessar para o outro lado todos os dias para ter uma vida plena. É necessário querer ou precisar muito para encarar a travvessia, mesmo que existam recompensas para quem conseguir. Além disso, que referências temos de cegos com vidas independentes? Principalmente a pessoa que perdeu a visão já adulta pode nem ter exemplos nos quais se inspirar nem conhecer pessoas que já se acostumaram com esses caminhos com quem trocar experiências.

Tem gente que tem predisposição para esportes radicais. Com todos esses percalços, ainda penso que vale à pena. Amo a liberdade de poder ir sozinho para a padaria ou para outro país e a vontade de descobrir como eu poderia me virar em cada situação foi na maioria das vezes maior do que o receio de não conseguir ou me machucar. Recomendaria a todos que buscassem ajuda especializada para que possam aprender técnicas e refinar os sentidos para experimentar isso com o máximo de segurança possível. ~São incontáveis as experiências novas a serem vividas quando se pode escolher quando e para onde ir a qualquer momento.

É normal ter medo, reconheço agora, que é hora de eu calçar o tênis novamente depois do isolamento e enfrentar meus receios que vieram com minha nova condição. No começo, talvez você peça para alguém de confiança ir a alguns metros de distância para ajudar se preciso. Comece indo para lugares bem pertinho e comemore cada passo a mais. Quem sabe você não pode ligar para a loja ou o restaurante onde quer ir para que alguém te espere na porta para te chamar quando você estiver perto? Certamente conquistará muitos apoiadores que ficarão felizes com seu progresso. Desejo que sua primeira volta no quarteirão seja tão emocionante quanto escalar uma montanha. Poder ir e vir a hora em que se deseja parece algo muito básico, mas para muitos é uma conquista de anos.

Se você não conseguir agora, se for difícil demais, acredito que você merece compreensão e respeito. Desejo que sempre haja quem queira e possa compartilhar seus caminhos com afeto. Se não der para ir com as pernas, talvez seja gratificante fazer viagens bem tão longe pelos livros, a partir de filmes, com a música.

Enquanto meu pensamento caminhava por essas direções, resolvi pesquisar no Twitter para descobrir o que se fala sobre o tema. Digitando palavras como cego, deficiente visual, rua e sozinho. Cheguei a posts de pessoas dizendo o quanto tinham pena de cegos desacompanhados, uma imagem que simboliza o desamparo.

Para mim, não faz muito sentido. A independência foi algo conquistado, um desejo cuja realização era condição incontornável para minha felicidade. Então estou sempre andando de cabeça erguida, mesmo quando um pouco desorientado.

Também havia outro tipo de postagem, de gente admirada com a coragem e a capacidade de orientação de quem não enxerga. Agradeço o elogio, mas eu preferiria que as coisas fossem mais simples. Seria melhor nunca ser visto com essa capa de herói e poder andar despreocupado, e com naturalidade como qualquer pessoa, porque teria como sentir com meus pés ou bengala quando chegasse o final da calçada, encontraria um piso com boa sinalização e a certeza de que sempre encontraria pessoas preparadas para ajudar quando preciso. Gostaria que um passeio pela vizinhança ou a ida ao trabalho não precisasse mais ser um ato diário de superação para ninguém.

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