Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Cadeira de rodas e mala perdida na chegada; como é viajar de avião sem enxergar

Embarque e voo trazem momentos de apreensão e aprendizados

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São Paulo

Quando pessoas com deficiência visual viajam de avião, cumpre-se aquela profecia de que os últimos serão os primeiros. No avião, somos os primeiros a entrar e os últimos a sair.

Pode ser que seja mais por eu ser antiquado do que por qualquer problema de acessibilidade nos sites e aplicativos das companhias aéreas, que não testei a fundo, mas ainda prefiro chegar cedo no dia do voo e fazer o check-in presencialmente. Sempre com auxílio de um atendente, nada de totens eletrônicos.

Logo que pego meu bilhete aéreo, informo que precisarei de acompanhamento até o portão de embarque e, após o voo, no aeroporto de destino.

Em alguns minutos chega alguém para me conduzir. Dependendo do aeroporto, vamos até o portão de embarque ou a alguma área em que ficam aguardando pessoas que precisam de algum auxílio, incluindo também crianças, idosos e pessoas com mobilidade reduzida.

Em geral, são minutos ou horas que aproveito para escutar um livro. Mas não estou livre de alguma tensão por medo de ser esquecido ali e o avião ir embora sem mim. Então uso o fone só em uma orelha e a outra se abre para prestar atenção no alto-falante que anuncia o início do embarque e chama os passageiros atrasados.

Também fico atento a quem está do meu lado. Caso perceba que tem gente do mesmo voo, melhor. Já tenho a quem perguntar se mudou o portão ou o horário da partida caso ninguém do aeroporto ou da companhia aérea venha me buscar.

Também é bom tentar puxar assunto. Amizades serão valiosas se der muita fome ou vontade de usar o banheiro e eu precise de alguém para me levar a uma lanchonete ou aos sanitários.

Isso se simpatia com o funcionário que leva até o portão de embarque não tiver sido suficiente para convencê-lo a quebrar um pouco o protocolo e me deixar em algum café e me buscar em uma meia horinha.

Ao entrar na aeronave e chegar ao meu assento, deixo a bengala aberta até que os vizinhos de fileira preencham suas vagas.

A exibição da deficiência tem razões práticas. Se eu estiver no assento do corredor, indica a quem chega e vai sentar no meio ou na janela que não basta se postar ao meu lado e ficar esperando que eu levante para pedir licença para entrar, porque eu não vou saber que há alguém ali esperando.

Por outro lado, caso eu esteja na janela, é sempre bom ter vizinhos conscientes de que posso precisar de ajuda na hora de pegar um café, barrinha de cereal ou refeição que passe pelos corredores. Se der match, pode ser até que consiga ajuda para usar o sistema de entretenimento do avião e escolher um filme, já que as telinhas não são acessíveis.

Um momento de apreensão é justamente quando passam os carrinhos de comida. Ouço o barulho dos pratos e talheres sendo trazidos ao longe. Depois, a voz dos comissários: "chicken or pasta?". Mas será que já é minha vez? Geralmente penso que sim quando estão três fileiras à frente. Abro a bandeja ostensivamente para que vejam que quero comer, sempre quero, e não passem reto pensando que estou dormindo ou desinteressado e me seguro para não parecer que tento furar a fila de tão esfrmado.

A escolha do prato exige sabedoria. Quanto mais picadinha vier a comida melhor. É bem improvável conseguir cortar um pedaço de bife naquela bandejinha apertada sem enxergar balançando e com os braços encolhidinhos que nem os do simpático Horácio, da turma do Mauricio de Sousa. Tenho sempre a impressão de que a bandeja vai escorregar, derrubar o copo em equilíbrio instável naquele buraquinho raso e vou terminar manchando a roupa de meus vizinhos de fileira.

Às vezes aprendo onde fica o botão para chamar os comissários para qualquer aperto. Noutras, uso o restinho de visão que ainda tenho para dar um jeito de ir ao banheiro sozinho. no escuro Para isso, acendo a lanterna do celular e deixo ela virada para cima, tapada por um cobertor, deixando escapar só uma pequena faixa de luz, que me servirá de farol. Passo pelos corredores contando o número de fileiras ultrapassadas para facilitar a volta.

Em terra firme, a demora para o desembarque costuma acontecer porque o avião chega antes do que a pessoa que me espera para me receber na porta dele. Já aconteceu de eu ter acesso privilegiado aos bastidores da aviação, assistindo a faxina da aeronave e à troca de pilotos e equipe para que se iniciassem os procedimentos para a próxima viagem. Depois de me preocupar se me levariam mesmo, agora fico pensando onde vou parar no final disso tudo.

Irritações das primeiras viagens passam a ser naturais. No exterior, especialmente nos Estados Unidos, é comum receberem pessoas com deficiência visual com uma cadeira de rodas. Muita gente fica ofendida, já que o olho não tem nada a ver com o que fica dentro das calças. Mas penso que isso deve ser o padrão de atendimento para tentar oferecer um atendimento eficiente ao passageiro, seja qual for a necessidade. De qualquer forma, não aceito a carona. Depois de uma viagem de horas sentado, não vão me tirar o alívio de caminhar por longos corredores.

Por outro lado, é comum também aparecerem motoristas em carrinhos elétricos abertos para nos levar, gritando para quem está na frente abrir caminho. É um passeio que não se costuma rejeitar.

No fim, há muita apreensão e suspense, mas tudo dá certo. E aprende-se muito no caminho. A lição mais importante é que não é admissível eu chegar a qualquer lugar e não lembrar como é minha mala, que eu mesmo organizei, nem saber ao menos qual sua cor.

Aconteceu em Israel, quando eu e o Reinaldo, colega jornalista especializado em sustentabilidade que participava do mesmo evento que eu, abrimos malas alheias que passavam pela esteira tentando identificar uma meia ou uma cueca para ter certeza de qual era a minha. Para evitar futuras deportações, agora, antes de viajar, tiro uma foto da mala para mostrar a quem está me ajudando a encontrá-la e coloco uma grande etiqueta com meu nome e um laço rosa-choque ou laranja berrante.

Vencidos todos esses desafios, pego um táxi e a aventura pode começar.

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