Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Conheça caminhos e desafios para o aprendizado da leitura musical em braille

Muitas partituras podem ser encontradas na internet, mas acesso à impressão ou equipamentos para leitura restringe oportunidades

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São Paulo

Entre os principais motivos que impedem a difusão das partituras musicais em braille está o fato de que musicistas, professores e estudantes de música não sabem que ela existe, apesar de terem sido criadas há mais de um século pelo próprio Louis Braille (1809-1852), o mesmo que desenvolveu o sistema de escrita a partir de pontos para serem sentidos pelo tato.

Mesmo com baixa visão, só fui ter notícia da existência da musicografia braille no final de meu curso de graduação em educação musical.

Não fiquei sabendo que cegos poderiam ler partitura por esse ter sido o tema de alguma aula. Não cheguei a ouvir nem sequer um breve comentário. Na verdade, descobri que havia a musicografia braille na reta final de um trabalho de iniciação científica, ao entrevistar uma cantora cega e sua professora. Ou seja, corri o risco de escrever um artigo sobre educação musical de cegos ignorando o fato de que quem não enxerga pode ler música.

Depois que a pessoa ouve falar da notação musical em braille e se interessa pelo tema, não é fácil saber qual o próximo passo. Não encontrei métodos que ensinem o passo a passo da musicografia braille. O que existem são manuais ou catálogos de símbolos e regras, sem vocação didática, nem sempre fáceis de serem localizados em formato acessível.

Também são raríssimos os professores particulares conhecedores do tema. Felizmente, no estado de São Paulo, surgiram nos últimos anos cursos introdutórios em escolas de referência, como a Emesp Tom Jobim (Escola de Música do Estado de São Paulo) e os conservatórios de Tatuí e Guarulhos.

O próprio funcionamento desse sistema de escrita musical traz seus desafios. O músico que lê suas partituras a partir do braille precisa adquirir rapidamente um conhecimento teórico que, com frequência, a pessoa que enxerga vai ver só na faculdade ou após anos de escola de música.

Acontece que, enquanto na partitura tradicional, as notas podem ser empilhadas umas sobre as outras, para indicar aquelas que soam ao mesmo tempo, a notação em braille é mais parecida com um texto, em que uma informação vem após a outra, sempre na horizontal. Enquanto a informação da partitura tradicional é gráfica, cheia de desenhos que sugerem como a música soa, no braille não existem pentagramas, claves são dispensáveis e, uma grande vantagem nossa, não precisamos nos preocupar com linhas suplementares, um suplício para a visão até para quem consegue ler bula de remédio confortavelmente.

Ou seja, enquanto quem lê uma partitura em tinta pode ver ao mesmo tempo que sobre uma nota Dó a uma nota Mi e outra nota Sol, quem está lendo pelo braille verá na mesma partitura algo como a nota Dó e um sinal que indica que ele deve tocar junto sua terça e sua quinta. O estudante cego precisa saber logo nas primeiras aulas o que são intervalos musicais, algo que o aluno iniciante que enxerga nem sempre presta atenção.

Na partitura comum, o espaçamento entre as notas ajuda a identificar intuitivamente quais as mais longas e curtas. No braille, uma semicolcheia, mais curta, ocupa o mesmo espaço de uma mínima ou uma semínima. Só muda a quantidade de pontos que o dedo do músico irá sentir a cada nota lida.

Uma habilidade sonhada por muitos músicos, a leitura à primeira vista, obviamente não é preocupação do músico cego. Na verdade, ele precisa decorar antes tudo o que vai tocar. Lê alguns compassos, memoriza, toca algumas vezes, volta para a partitura, confere se pegou todos os detalhes e vai para o próximo.

São apenas alguns exemplos de como se trata da mesma coisa, a leitura das mesmas notas, mas a partir de processos diferentes, o que pode dar a impressão de ser algo muito mais difícil do que de fato é e criar resistência entre cegos e seus professores.

Duas partituras em braille abertas sobre a estante de um piano vertical ( Foto: Arquivo pessoal/Filipe Oliveira ) - Arquivo pessoal

Nem foram esses os maiores empecilhos no meu caso. A pergunta que eu me fazia há dez anos, quando eu descobri que a musicografia braille existia e fiz algumas aulas junto a um grupo que se reunia na Ordem dos Músicos do Brasil, no Centro de São Paulo, era a seguinte: Depois que eu aprender tudo isso, onde vou conseguir partituras para justificar esse esforço? Pensava que elas não existiam. Frustrado, deixei a música de lado por um longo período, onsciente de que minha visão seguiria em declínio e sem perceber alternativas.

Como contei neste texto, resolvi dar uma chance ao braille após ouvir uma entrevista da pianista e pesquisadora Fabiana Bonilha, cega e que colecionou desde a infância partituras feitas sob encomenda no Brasil, pela Fundação Dorina Nowill, onde trabalhou por décadas o professor Zoilo Lara de Toledo, e de instituições estrangeiras.

Alfabetizado por ela e entusiasmado, comecei a buscar meus próprios caminhos que me permitissem voltar ao estudo do piano. Aos poucos, descobri alguns caminhos.

A maior parte do material que uso para meus estudos encontro na internet, da mesma forma que os demais estudantes de música.

Os acervos, porém, são outros. Em geral, as partituras estão em sites de bibliotecas estrangeiras ou de transcritores.

Localizada a peça que quero aprender, há dois caminhos. Posso enviar o arquivo para uma gráfica especializada em braille, o que é caro, ou usar minha linha braille, equipamento que lê arquivos digitais e apresenta os pontinhos em relevo nele próprio. Neste caso, a partitura fica gratuita, mas um equipamento novo pode custar mais de R$ 20 mil. Uma biblioteca pública que faça a impressão, mesmo que restrita a uma cota de páginas por dia, pode ser uma alternativa mais viável, mas que não cheguei a testar, porque os serviços estão limitados em razão da pandemia de Covid-19.

A busca por essas partituras me levou a um link com uma lista de sites de todo o mundo relacionados de algum modo à musicografia braille. A maioria não tinha material disponível para interessados no Brasil. Por outro lado, as visita foi produtiva no coreano Music Rehabilitation Center,ao no chinês BrailleOrch e, no que se mostrou mais completo, o da Biblioteca Chile, Música y Braille.

Por vezes, a partitura que procuro não está nesses sites, mas os responsáveis por eles têm acesso a mais acervos que podem me ajudar, então também faço contato por email.

Para aquisição de partituras impressas, que oferecem uma experiência de leitura mais prazerosa do que a linha braille, usei o site britânico Golden Chord e a Biblioteca Peri Ciechi , italiana.

Aos poucos, fui deixando de acreditar que a construção de meu repertório aconteceria em função do que tivesse a sorte de achar e cheguei à conclusão de que ao menos o repertório do piano erudito europeu básico está disponível, incluindo sonatas de Mozart e Beethoven, o Cravo Bem Temperado de Bach, estudos, Prelúdios e Baladas de Chopin e peças de Ravel e Debussy. A presença de repertório brasileiro, porém, é nula. De tudo o que foi produzido pela Fundação Dorina Nowill, uma pequena parte foi digitalizada e pode ser baixado no site da Dorinateca.

Por vezes essa exploração sobre as possibilidades da musicografia braille tem mais a ver com o ofício de um técnico em informática do que com o de um musicista.

Descobri ser possível baixar na internet arquivos que foram criados em editores de música tradicional, como Finale e Musescore, e convertê-los em partituras em braille. Para isso, é preciso falvá-los para o formato MusicXML. A partir daí, posso usar um serviço gratuito em desenvolvimento chamado BrailleMuse ,da universidade de Yokohoma, no Japão. O resultado do trabalho da inteligência artificial do programa é bem razoável e permite que eu consiga ter músicas simples em formato acessível para ensinar a iniciantes de música.

Outro programa, o Braille Music Editor, permite escrever a partitura em braille, ouvir o que se digitou e, o mais interessante, tirar uma cópia dela em notação tradicional. O software me deu 60 dias grátis para testar seu funcionamento, tempo suficiente para fazer um arranjo de um hino religioso para um estudante de piano com leitura fluente. Ainda não investi os 364 euros (R$ 2.400), sem contar impostos para a transação internacional, necessários para ter uma licença definitiva.

Minha conclusão até o momento é que ser um músico ou professor de música profissional completo sem enxergar já é plenamente possível quando se tem acesso a todas as ferramentas disponíveis. Por outro lado, exige uma pesquisa árdua e um investimento alto em equipamentos, softwares e músicas. Como em muitas outras áreas da vida, ter recursos para adquirir serviços e equipamentos ligados à inclusão e à acessibilidade reduzem muito a relação de causa e efeito que pode haver entre deficiência e limitação. Injusto e injustificável é que são oportunidades ainda reservadas para poucos.

Perceber que não seria por falta de partituras que eu deixaria de tocar piano depois de ter enterrado muitos planos foi uma daquelas descobertas que desequilibram, fazem mudar o rumo das coisas. Decidi que deveria dedicar mais do meu tempo a estudar. Voltei a dar aulas de música, principalmente para outras pessoas cegas, aproveitando as facilidades da internet. Quem sabe consiga escrever livros para iniciantes e seus professores que enxergam explicando como tudo funciona. Não quero que mais pessoas fiquem para trás, como eu fiquei, por falta de informação e acesso.

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