Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Um jogador cego faria bem ao Big Brother e ao Brasil

Sociedade terá amadurecido quando alguém que não enxerga puder tanto ganhar como também ir para o paredão

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São Paulo

Chega um novo brother na casa. Na verdade dois, porque Fernando vem acompanhado de Homero, seu cão-guia, que logo se sente muito à vontade no novo lar, abana o rabinho e já se aninha no sofá para receber cafunés de todos.

Não passa nem um dia e os brothers e sisters mais exaltados se rebelam contra os novos moradores. Como competir com um jogador que vem com um aliado tão forte? Afinal, que telespectador iria votar para tirar da casa mais vigiada do país um labrador fofo, que dá patinha, gosta de nadar, aprende algo novo todo dia e entende inglês e alemão?

A regra é clara, cão-guia pode ir para qualquer lugar, é lei, mas Big Brother é um jogo e tem muito dinheiro envolvido para que as condições não sejam iguais para todos os participantes.

A produção atende ao pleito, que dividiu as redes sociais. Mero, como passou a ser conhecido pelo Brasil nos dois dias em que foi uma estrela, voltará para sua casa de verdade. Fernando, que se derramou em lágrimas em rede nacional, dependerá apenas da Magrelinha, sua bengala, e do cotovelo dos outros jogadores para andar por sua nova casa, que ainda não está totalmente mapeada na mente dele. Todos se comprometem a ajudar

A estratégia de eliminar Fernando começando por Mero, porém, não se mostrou vitoriosa. O vídeo da despedida do cãozinho recebe mais de 15 milhões de cliques em um dia. Os líderes da revolta anti-canina são sacados da casa um a um nos paredões seguintes.

Gostaria muito de ver barracos assim sendo mostrados para todo o país. O Big Brother Brasil ano após ano pauta o debate público sobre temas como machismo, feminismo, preconceito contra pessoas LGBTQIA+, contra pessoas de diferentes regiões do Brasil, entre tantos outros.

A participação de um brother cego traria a oportunidade de espiarmos como uma pessoa que não enxerga é tratado no dia a dia e em situações de estresse criadas pelo programa. ,Seria uma oportunidade de discutirmos o capacitismo preconceito contra a pessoa com deficiência) e de ouvirmos de alguém que vive em condições desconhecidas pela maioria de nós qual sua história, desafios, conquistas e frustrações.

Acima de tudo, seria educativo. O Brasil descobriria que braille não é hebraico, que cego pode ir ao banheiro sozinho, se vestir, cuidar da casa, dançar, se divertir, falar palavrão, se embriagar, fazer alianças e trair, ser gentil ou um bavaca.

Será que haverá muita diferença no modo como cada brother e sister trataria Fernando? Ele receberia ajuda até aprender os caminhos de seu novo lar, que mereceriam uma boa reforma para incluir piso-tátil? para Teria companhia para se virar na hora de fazer o almoço? Seria incluído de forma criativa na hora de enfrentar os demais em um jogo que não é acessível a princípio?

Provavelmente haverá participantes que, seja por uma personalidade mais cuidadora, seja para ganhar apreço do público, não deixariam Fernando em paz, iriam querer levá-lo o tempo todo e quase dar comida na boca. Outros, assistiremos, vão fazer silêncio quando ele está perto para não serem notados e importunados por ele. Taí um meme que ficará famoso, Fernando procurando seus brothers para pedir auxílio em alguma tarefa mais ingrata para se fazer com os olhos fechados e vários brothers escondidos sob a mesa, fazendo sinal para que fiquem em silêncio.

Quem sabe Fernando não encontraria um crush na casa. A internet explodiria com a torcida e outros torcendo o nariz para esse romance. O que chamaria a atenção não seria a imagem do primeiro beijo, e sim da primeira vez em que ele sente com calma e paixão o rosto de sua nova namorada. Mulheres e homens tentariam se lembrar se alguma vez já foram tocados assim, com uma avidez delicada de quem busca conhecer o outro de verdade.

A participação de Fernando em um programa de tamanha audiência também movimentaria a comunidade de pessoas com deficiência visual, chamada por nós de cegolândia. Vídeos amadores com episódios do BBB com audiodescrição (descrição de imagens para ampliar a compreensão de quem não enxerga)circulariam na internet, o que facilitará muito a compreensão dos acontecimentos da casa, especialmente das festas e momentos de maior exaltação, em que todo mundo grita junto e a gente só entendia o apito agudo a cada três segundos para encobrir os palavrões.

Mesmo com todas essas peripécias, o paredão será a hora de descobrirmos se a participação de Fernando valeu à pena. Não importa tanto o resultado, e sim o que se dirá a respeito. Será que a sociedade brasileira vai amadurecer a ponto de entender que um cego é como outro ser humano qualquer, de quem podemos gostar ou não por quem ele é de fato, não por sua deficiência? O importante é conhecer e respeitar as suas diferenças.

Fernando não é nem um santo, que não se possa criticar, nem um café-com-leite, que não está na vida e no jogo para ganhar.

Na foto, Pedro Scooby, Tiago Abravanel, Douglas Silva e Arthur Aguiar fazem selfie
Primeira festa do Big Brother Brasil em 2022; - Globoplay/Reprodução

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