Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Aplaudi de pé achando que havia entendido tudo

Sobre como espetáculos podem ser incompreensíveis quando não há acessibilidade

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São Paulo

Sentir-se inteligente faz bem.

Era o que pensava enquanto assistia à peça "Língua Brasileira", em cartaz no Sesc Consolação. Mais especificamente, enquanto escutava à declamação de textos em tupi, latim e línguas que imagino serem árabe e iorubá.

Só sendo muito letrado para entender que nem sempre é preciso entender, para apreciar o som de outros idiomas pelo puro deleite auditivo. É arte pela arte, não precisa de enredo para que seja sublime.

Eis que em determinado momento passamos a ouvir dois textos em língua que desconheço sendo lidos ao mesmo tempo. Minha mente se aguçou ainda mais, fazia paralelos, buscava metáforas, metonímias, analogias. Vinha a memória as aulas de história da música e os motetos da Idade Média, embrião do que Séculos mais tarde iria dar nas fugas de Bach, quando textos diferentes eram cantados ao mesmo tempo.

Não vou negar que era um grande relaxamento quando entrava a música do Tom Zé, responsável pela trilha sonora, ou textos em nossa língua pátria. Mas o que pensava ao final, quando aplaudia de pé, era na audácia dos artistas de colocar a plateia em contato por quase 3 horas com a palavra no que ela tem de mais bruto, sua melodia, seu rítmo, doçura e fúria. Isso sim era arte da mais elevada, que carece de explicação para fazer sentido.

Teria voltado para casa muito satisfeito, não fosse o funcionário do Sesc que me guiou para fora do teatro e me ajudou a localizar o carro que chamei a partir de um aplicativo estragar tudo.

Constrangido, ele veio já se desculpando. Era uma pena a peça não ter audiodescrição, certamente eu havia perdido muita coisa.

A princípio, tentei tranquilizá-lo. Não fazia mal que eu não soubesse quais os trajes dos atores ou algum detalhe do cenário. Afinal, a peça era toda falada, conduzida pelo som, eu tivera uma experiência parecida com a dos demais espectadores.

Mas, pensando melhor, resolvi perguntar... tinha legenda? Sim, praticamente o tempo todo. Foram mitos da criação de diferentes povos e outras histórias incríveis. Tantas e tão interessantes que meu guia nem saberia destacar uma em especial.

Por alguns instantes corri o risco de me achar tão culto que me tornaria esnobe. Mas já estou curado e de volta ao meu devido e humilde lugar, o de quem não entendeu quase nada e ainda por cima achou o máximo.

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