Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira
Descrição de chapéu transporte público

Uma viagem às cegas usando o transporte público paulistano

Como quem não enxerga anda de metrô e de ônibus

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São Paulo

Uma das consequências do meu retorno à faculdade, em aulas presenciais, foi eu reaprender a usar o transporte público diariamente após quase dois anos de trabalho a partir de casa e muito isolamento.

Em especial, voltei a pegar ônibus após quase uma década, quando ainda não havia conexão entre as estações de Metrô que passam por Santo Amaro, onde morava, e as linhas Azul e Verde. Naqueles tempos também tinha muito mais visão, o que me deixou receoso nas últimas semanas sobre como seria meu desempenho nas minhas próximas viagens.

Agora moro a cerca de um quilômetro de uma estação do Metrô. A distância permite uma caminhada a pé, mesmo que as calçadas sejam precárias. Por outro lado, a uma quadra de casa há uma avenida larga, que não consigo atravessar sozinho com segurança. Então alguém daqui de casa oferece uma carona para esse primeiro trecho do caminho.

Outra opção é chamar um carro por aplicativo e ir até a estação. Posso fazer isso sozinho tranquilamente, com auxílio do leitor de telas que a maioria dos celulares possuem. Esse sistema me passa a partir de uma voz artificial as informações que preciso para usar o app. A única coisa diferente que faço é mandar uma mensagem de texto avisando ao motorista que tenho deficiência visual e estou com uma bengala, assim ele sabe que precisa me chamar quando chegar, não ficar esperando que eu identifique o modelo de seu carro e leia a placa. Avisar da deficiência não faz com que ninguém cancele a corrida— quando o cego tem cão-guia, a conversa é outra.

Ao entrar na estação, sei que preciso dar poucos passos para frente e virar à esquerda. Logo sinto nos pés ou na bengala o piso metálico que indica o início da escada rolante. Minha mão vasculha o espaço na altura do corrimão e, depois que o encontro, dou o primeiro passo para iniciar a descida.

Sigo em frente no piso tátil até encontrar um funcionário.

Em São Paulo, os profissionais do Metrô levam quem tem deficiência visual até a segunda porta do primeiro vagão do trem. Ligam na estação que preciso descer e me colocam para dentro sozinho. Acontece às vezes de recomendarem que tire a mochila das costas e dê uma empurradinha para entrar em um trem em que os passageiros viajam um tanto aglomerados.

Quando chego à estação de destino, um funcionário já deve estar esperando por mim. Ele poderá me levar até o ponto onde vou pegar o ônibus para seguir viagem. Isso dá uma boa comodidade. Encontrar onde estão as paradas seria um grande desafio, principalmente em calçadas largas, em que eu poderia passar ao lado delas sem perceber.

Conseguir pegar o ônibus certo era minha maior preocupação em todo o caminho. Antes, mesmo com uma perda visual considerável, conseguia ler o nome da linha escrito na frente do veículo ou seu itinerário na lateral. Agora dependo muito mais de quem está no ponto comigo. É preciso falar em bom som algo como "Alguém vai pegar o Brasilândia?". Se sim, já fico seguro. Agora pode acontecer de não haver ninguém com destino parecido e eu ficar passando de uma pessoa para outra. Dizem algo como: "Chegou o meu, mas vou pedir para essa senhora te ajudar", por exemplo. Se fizerem assim, tudo bem, está ótimo. Meu receio é que alguém que prometeu ajuda embarque em outro ônibus sem avisar que foi embora.

Se um dia chegar no ponto e não encontrar ninguém, o plano é buscar socorro na tecnologia. Baixei recentemente o aplicativo israelense Movit que, entre suas funções, avisa quais os próximos ônibus que vão passar em determinado ponto e estimativa de tempo que falta para chegarem. Mesmo já tendo ajuda garantida, testei hoje e ele acertou a ordem dos veículos que viriam.

Nas primeiras viagens de ônibus, fiquei em dúvida sobre quando eu deveria me preparar para descer. É que, com minha visão atual, olhando pela janela, não faço ideia se estou nas avenidas Paulista, Faria Lima ou Doutor Arnaldo. Na dúvida, abri o Uber de dentro do ônibus mesmo e vi quando custaria ir de onde estávamos até a faculdade. Só R$ 10. Melhor ficar esperto!

Dias depois, lembrei do SoundScape, aplicativo da Microsoft para pessoas com deficiência visual que tem a função de dizer em que rua e número aproximado o usuário está, além de ficar contando o que há ao redor. Um tour guiado inusitado e uma boa companhia na hora do aperto.

Desço pela porta da frente do ônibus. Com o passar dos dias, os motoristas começam a me conhecer, até me deixam um pouco mais perto do destino do que a parada prevista em seu itinerário.

Daí em diante, o percurso é curto, de cerca de 300 metros, e envolve travessias que podem ser feitas de olhos fechados sem muito risco.

Para quem não convive com pessoas com deficiência visual, a descrição acima pode parecer uma epopeia com boas chances de dar errado. Pelo contrário, Passada a apreensão inicial pela falta de prática, minha impressão é que tenho a sorte de ter um caminho suave a percorrer todos os dias, contando com a ajuda da tecnologia e a boa vontade das muitas pessoas que encontro no trajeto e oferecem um cotovelo ou uma informação importante.

O transporte público pode ter milhares de defeitos, mas funciona, é fundamental e pode ser usado por nós que não enxergamos. Falta tornar as calçadas e os semáforos acessíveis para que possamos ver muito mais gente andando com suas bengalas por nossas cidades.

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