Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira
Descrição de chapéu mercado de trabalho

Pessoas com deficiência não podem perder espaço no debate sobre diversidade no mercado

Lei de Cotas tem o propósito de promover mudanças dentro de companhias

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

A conversa com um amigo foi parar no tema da diversidade no mercado de trabalho. Ele contava que muitas empresas estavam engajadas em oferecer formação e contratar mulheres negras, que todos entendiam que precisavam de diversidade de gênero e falar em trans não era mais tabu.

Em relação a pessoas com deficiência, uma nova ideia vinha recebendo aplausos. A proposta, em linhas gerais, era a seguinte: como muitas empresas não conseguem cumprir a cota mínima de profissionais com deficiência em seus quadros, exigida das companhias com a partir de 100 contratados, por que não substituir a cobrança de quem não consegue cumpri-las por doações para entidades filantrópicas que apoiam esse grupo?

Dessa forma, as empresas, que não conseguiriam contratar por falta de pessoal com deficiência qualificado à disposição, estariam cumprindo de algum modo sua responsabilidade social, em vez de apenas pagar multas pelo descumprimento.

O argumento ganha força em um país no qual temos como padrão desconfiar do uso que o governo faz de multas e dinheiro público em geral. Desse ponto de vista, melhor que as empresas escolham boas organizações para apoiar do que o dinheiro delas seja mal empregado pelo Estado. E, no final das contas, a doação, tanto como o pagamento de salários, estaria apoiando a subsistência de quem tem uma limitação física.

Concordo que muitas organizações filantrópicas fazem um trabalho necessário para a reabilitação de pessoas com deficiência e, inclusive, parte delas têm programas para preparar seus beneficiários para o mercado de trabalho.

Porém temo que uma troca das cotas por doações parta de premissas erradas a respeito da necessidade de haver uma reserva de vagas para pessoas com deficiência.

Minha crítica, que externei durante a conversa, é que abrir essa brecha na lei permitirá que, na prática, uma empresa decida que não iria contratar pessoas com deficiência e, com o argumento de que não sabe lidar com esse grupo, tal como muitas escolas fizeram com crianças, deixará suas portas fechadas de vez.

Se a empresa não tem como política ou obrigação contratar pessoas com deficiência, ela não prepara sua área de recursos humanos para atender esse grupo, não desenvolve protocolos e adaptações para entrevistas de emprego, não planeja mentorias para desenvolver profissionais do grupo, não vai atrás de parceiros e ONGs que possam ajudar no recrutamento, não constrói rampa ou banheiro acessível nem instala softwares e compra tecnologia assistiva.

Ou seja, para quem não contrata pessoas com deficiência, é mais fácil seguir não contratando. Prefiro, em vez de dizer que inclusão aumenta em X% o faturamento das empresas, lembrar que é difícil e precisa ser feito porque é a obrigação de todos que buscam uma sociedade menos injusta. Claro que, ao estar preparada para uma nova realidade inclusiva, as empresas podem deixar para trás o preconceito e descobrir que tem muita gente talentosa e que a deficiência poderia estar escondida em uma nota de rodapé no currículo de muitos profissionais.

A Lei de Cotas não serve só para garantir a subsistência das pessoas com deficiência. Para isso, existe todo o sistema de assistência social do governo, que precisa atender principalmente quem não conseguirá se inserir, temporária ou permanentemente, no mercado, por limitações mais severas. Ela serve para abrir as empresas para que essas pessoas possam se desenvolver profissionalmente também. Todo mundo adora reclamar do trabalho, mas o fato é que ele é um dos fatores mais importantes para construirmos nossas identidades, relações sociais, rotinas, amizades.

Tenho minhas dúvidas de que empresas estejam mesmo desesperadas atrás de profissionais com boa formação. Mesmo passando por um grande jornal como a Folha, os convites para entrevistas que recebi não enchem uma mão. Também não vejo cegos que estão no mercado trocando de empresa o tempo todo, o que indicaria um aquecimento do mercado. Mas é possível que haja uma escassez na formação de pessoas com deficiência que dificulte sua contratação imediata. A inclusão nas escolas e faculdades ainda precisa evoluir e são inúmeras as barreiras no caminho de quem não tem o corpo, os sentidos e a mente dentro do que se entende como a norma.

Talvez haja aí uma avenida para discutir algum aperfeiçoamento na lei, ao abrir espaço para que empresas trabalhem com planos de maior prazo para se adequarem e, enquanto não aloca os profissionais em seus quadros, ofereçam formação de qualidade que habilite muitas pessoas com deficiência para trabalhar dentro delas ou na concorrência. Nesse caso, penso que as parcerias com as organizações da sociedade civil que se especializaram no atendimento a este público fazem todo o sentido, desde que o escopo do projeto tenha metas claras e relacionadas à inclusão profissional.

A Lei de Cotas existe desde 1991, quando o termo inclusão estava fortemente associado com o tema das deficiências, e foi responsável pela entrada de centenas de milhares de pessoas no mercado de trabalho. Não podemos deixar que, depois de estarmos na vanguarda da abertura das empresas ao diferente, passemos para o final da fila em um momento tão importante no qual as empresas estão ainda mais atentas ao tema da diversidade.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.