Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Um dia em que cegos e guias patinaram juntos

Redescobri uma atividade que acreditava que não poderia mais fazer

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São Paulo

Fazia tempo que algo que encontrava em uma rede social não me empolgava. Até ouvir, pela voz do leitor de telas do celular, a notícia de que No próximo domingo pela manhã haveria uma oficina de patinação para cegos no Parque Villa-Lobos, em São Paulo. Imediatamente soube que precisava estar ali.

Todo mundo tem sua lista de pequenas e grandes frustrações por atividades que acha que não consegue ou não pode fazer. Quando a gente tem uma deficiência, corre o risco de a lista ficar maior ainda. Patinar estava na minha, junto com jogar vídeo- game e ler gibi. Coisas que fiz muito quando era criança e que dava um pouco de pena quando pensava que não daria mais para fazer bem sem enxergar.

Estava longe de ser o único que viu o convite e se motivou para aparecer, com uma mistura de animação, curiosidade e frio na barriga. A garoa que começou logo cedo não impediu que um grupo de mais de 15 pessoas com deficiência visual se reunisse às 9h na estação de trem que fica ao lado do parque.

Cada um que desembarcava ali era conduzido até o grupo por um funcionário da CPTM e já ia perguntando quem fazia parte da rodinha, já que não podia ver os novos e velhos amigos. Teve quem madrugou e veio de Campinas só para o evento.

Na hora marcada, apareceu por ali um grupo de patinadores do Sampa Rollers, que se encontram no parque todos os domingos. Eles haviam acabado de participar de um treinamento para aprender como guiar cegos sobre rodas com a Bia Santana, patinadora que tem deficiência visual, participa de competições nacionais e internacionais e armou o encontro. No exercício, alguns de nossos condutores vendaram os olhos e saíram patinando com um colega ao lado, para entender a experiência que teríamos.


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Cada um dos patinadores cegos ou com baixa visão recebeu um par de patins emprestados. Eles foram arrecadados ao longo dos últimos dias pela Bia, que perguntou a seus amigos quem tinha um par sobrando e poderia ceder para a atividade e aos cegos interessados qual o número de seus calçados. Apesar de ter conseguido muitos, houve lista de espera de nove pessoas só para o número 40, contou ela.

A patinadora Bia Santana, que é cega, anda de patins com as mãos nas costas de sua guia, Renata Melo; elas estão abaixadas, apoiadas sobre a perna direita e com a perna esquerda para o lado. Usam equipamento de proteção. Ao fundo, veem-se árvores e um gramado - Arquivo pessoal

Guias e guiados estavam ansiosos. A Talita Ferreira, mais conhecida como Tatá, nem esperou todos se apresentarem e já foi me ajudando a calçar os meus patins antes da hora. Tomamos um puxãozinho de orelha da moça que dirigia a atividade no momento e espantava a todos com sua empolgação e voz forte àquela hora da manhã. Coloquei o tênis novamente enquanto esperava que a hora de começar chegasse logo.

Fomos divididos em quatro grupos, sendo que havia um guia para cada pessoa com deficiência e um instrutor certificado para comandar cada um desses grupos. Todos voluntários.

Além de sermos duplamente monitorados, também vestimos capacete, joelheira e proteções para cotovelo e pulso. Não havia espaço para questionamentos a respeito da segurança. Brinquei que estava me sentindo de armadura, ao que a instrutora do meu grupo retrucou: "Prefere ficar assim ou com o braço quebrado?"

Levantar e ficar em pé sobre as rodas pela primeira vez já fez acelerar o coração. Será que ainda sei fazer isso, depois de mais de quinze anos sem colocar um desses nos pés, ainda mais agora sem ver para onde estou indo?

Primeiro demos alguns passos marchando sobre a grama, sem deslizar. As botas pareciam pesadas e o exercício era bem cansativo.

Na hora de ir para o asfalto, ainda estava receoso. Para não contrariar a instrutora do nosso grupo, achei por bem seguir marchando sem deixar as rodinhas rolarem no chão. Cansava muito. E quando elas iam rodando, mesmo sem querer, era um alívio. Disse isso para ela, meio reclamando, e ouvi que já era para deslizar mesmo. Daí não parei mais.

Foram muitas voltas, cada vez mais longas e mais rápidas, enquanto a Tatá, minha guia, também deslizava sobre os patins dela praticamente sem tirar o pé do chão e me segurava pelo braço para ajudar a frear na hora certa e fazer curvas.

Não dá para dizer que andar de patins seja igual a andar de bicicleta. A segurança foi vindo aos pouquinhos e recebi a instrução de não esquecer de inclinar o corpo para frente várias vezes. Me dei conta de quanto é importante seguir o conselho depois de cair de bumbum no chão.

Dos 18 participantes, Bia conta que 17 conseguiram deslizar com os patins. Duas chegaram a andar sozinhas, com seus guias chamando pelo nome ou batendo palmas a alguns metros de distância. Houve mais algumas quedas entre os participantes, mas não há notícias de feridos.

Três horas de patinação naturalmente são pouco para reaprender todo o básico, mas certamente provaram que é possível e planejo voltar mais vezes para patinar com o Sampa Rollers, mesmo que não haja um encontro específico para cegos.

Por que eu não tinha tentado antes? Consigo pensar em dois motivos. Não fazia a menor ideia de que andar de patins sem enxergar fosse possível. Faltava informação, não sabia de quem tivesse feito isso antes e como.

Além disso, não passou pela minha cabeça que uma pessoa, ainda mais desconhecida, iria dedicar um dia de lazer para andar comigo. Às vezes a gente que tem alguma limitação se esquece de que chamar alguém para passar algumas horas alegres com a gente pode ser mais um convite para um um fazer companhia ao outro e trocar experiências diferentes do que um pedido de ajuda ou um favor que será recebido com mã vontade, como chateação.

Aquele domingo no parque faz acreditar que podemos ser acolhidos quando desejamos algo tão simples, mas tão fundamental e por vezes inacessível para nós, que é ter um domingo de diversão no parque.

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