Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

O milagre do peregrino

A cura para a deficiência visual não está nas minhas orações

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São Paulo

Eu estava em Dublin, na Irlanda, visitando amigas que se mudaram para lá com o objetivo de estudar inglês.

Não havia espaço para mim na casa delas, então decidi me hospedar em um hostel em que a diária não passava muito de US$ 10. Nas modestas instalações em que fiquei, o chuveiro era acionado por um botão que, depois de pressionado, ia voltando à posição inicial e interrompia o fluxo de água quando completava seu percurso, após alguns segundos.

O quarto misto era dividido com cerca de 15 pessoas. Mas nem o banho com água contada no frio nem a falta de privacidade ou silêncio de noite me desanimaram. Eu achava tudo ótimo, porque meu plano era me misturar e tentar me unir a um grupo de turistas para entrar nos passeios deles e curtir melhor a cidade enquanto minhas amigas estavam na escola. Fiz ammizade com um pessoal de uma turma de brasileiros e portugueses e exploramos juntos a cidade. Depois, mais confiante, passei a pegar Uber sozinho e depois a entrar em tours de ônibus pelas cidades vizinhas.

Em um belo sábado de sol, eu e minhas amigas resolvemos ir até o Phoenix Park com o objetivo de dar cenouras aos cervos que viviam por ali. Cruzamos a cidade a pé e andamos o dia inteiro à procura dos bichinhos. Eles só apareceram ao cair da tarde, quando já havíamos desistido e fazíamos o caminho de volta. Comeram na minha mão. Ou melhor, roubaram a cenoura dela tão logo eu notava que eu me aproximava de um deles.

Era o que se podia chamar de uma viagem feliz de quem estava curtindo a vida a passeio por alguns dias.

Ao voltar para o meu quarto depois da caminhada, só queria colocar os pés para cima e sentir as pernas latejando depois de muitos quilômetros rodados até adormecer.

Foi quando conheci um novo companheiro de quarto. Acho que ele se chamava John. Se não me confundo, era da Virgínia do Norte. Mas do nosso diálogo lembro bem.

John me contou que era um peregrino. Vivia viajando, ia para onde Deus mandava. Até minutos atrás não sabia o que viera fazer em terras irlandesas. Mas foi só me ver entrando no quarto com minha bengala que entendeu que sua missão era me curar.

Perguntou-me sobre minha deficiência e sobre minha fé. Comentei vagamente que era de família cristã.
Ele pediu para fazer uma oração por mim. Concordei.

Até aí, não era exatamente uma novidade, fora a questão de acontecer na Europa. Eu achava que esse hábito de sair prometendo cura para deficiência a estranhos era algo mais ligada a cordialidade brasileira e sua fé em milagres transversal ao vasto catálogo religioso nacional. Já voltei para casa de caminhadas com imagens de santos e convites para igrejas variados. Não faltou nem um panfleto do Universo em Desencanto, religião que foi abraçada por um tempo pelo Tim Maia e o inspirou para compôr seus discos mais aclamados.

Mas houve algo diferente conforme o peregrino avançou em sua prece. Mais do que uma bênção ou cura, a oração se encaminhava para o exorcismo. Que o Diabo que me impedia de enxergar corretamente fosse embora do meu corpo, dizia.

Depois do amém, John perguntou se eu enxergava melhor. Eu Respondi seria bom acendermos a luz para eu poder dizer com mais segurança. Agora no claro, confirmei que tudo parecia igual.

Ele não se deu por vencido. Esfregou uma mão na outra para aquecê-las e pediu para colocá-las sobre meus olhos. Novas palavras cheias de paixão e fé. Mas tive de decepcioná-lo novamente, tudo seguia igual.

Ele me perguntou se eu acreditava mesmo que Deus poderia me curar. Respondi que sim, desde que ele achasse que deveria, mas a gente nunca sabe o por quê das coisas e nem se era mesmo a hora que Ele desejava fazer isso. Depois da terceira tentativa, o peregrino disse que poderia levar um tempo, mas que eu já estava sendo curado e foi telefonar para a família.

De lá para cá, minha visão só diminuiu. Mesmo assim, passados mais de quatro anos, eu considero esse um dos dias mais marcantes da minha vida.

Foi a partir daquela oração que tomei consciência de que, mesmo tendo feito uma cirurgia nos olhos e passado por vários médicos e tratamentos heterodoxos, eu não tinha doença nenhuma, muito menos espírito ruim no corpo.

Eu estava em outro continente, indo a pubs sozinho ouvir música celta e tomar cerveja enquanto treinava o inglês com quem viesse puxar assunto, visitando museus sobre o folclore irlandês, viajando e andando a esmo, curtindo a vida do meu jeito. O que precisava ser corrigido era alguém olhar para mim naqueles dias de diversão e liberdade e só conseguir enxergar frustração e lamento.

Homem lê um livro em braille; ele está sentado e em frente a uma janela - MUHAMMAD ZULFAN DALIMUNTHE - 4.abr.2022/AFP

Em minhas conversas com Deus, a falta de visão não é assunto. Por vezes é difícil, a gente se cansa de enfrentar a ausência de acessibilidade e o desconhecimento sobre nossa condição e potencial. Mas eu gosto de ser desse jeito, de ouvir livros, ler em braille, encontrar pessoas desconhecidas na rua que queiram fazer parte do caminho comigo, descobrir novas formas de usar os sentidos e experimentar a vida.

Como disse a cantora, compositora e escritora Sara Bentes, voltar a ver é como ganhar na loteria. Se acontecer, está ótimo, buscaríamos o prêmio. Mas perde-se muito quando se passa a vida em função dessa expectativa.

Quem sabe poderíamos tirar das costas divinas o dever de curar quem tem uma deficiência (que não é sinônimo de doença e, por isso, não é algo que vá bem com a palavra cura), e assumíssemos essa responsabilidade de fazer a vida ser melhor para todos, garantindo o direito de nós que temos uma deficiência a usufruir de todo o potencial que temos?

Para conhecer a Sara e outros pensamentos dela e de outros artistas sobre nossas expectativas e a dos outros em relação a cura da deficiência, recomendo essa live que ela fez no Instagram com a cantora Karine Rodrigues e o ator e escritor Edgar Jacques, todos cegos e saudáveis.

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