Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Convivendo com cegos e com quem tem visão

Se entre as pessoas que enxergam impressiono, no meio de cegos, posso me sentir um um trapalhão desengonçado

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São Paulo

Sou um só, mas vivo em dois mundos muito diferentes.

Em um deles, em que a vida é mansa e todos são amistosos, eu sou super inteligente e impressiono com meus poderes de ouvir o robô que fala no meu celular e lê as mensagens no WhatsApp. Mais ainda quando digito as respostas de olhos fechados: "Como ele consegue ouvir isso falando tão rápido!", dizem espantados.

No outro mundo, que é habitado pelas feras, sou zoado porque uso o leitor de telas do celular muito lento, só com 65% da velocidade total. Acham insuportável aguentar aquela vozinha modorrenta lendo o cardápio do iFood enquanto os estômagos rugem apressados.

No primeiro, sou visto com admiração por conseguir ir de casa ao trabalho e à faculdade sozinho, mesmo tropeçando aqui e ali.

Mas, quando é para falar com quem entende como funciona a vida a vera, ninguém se conforma com minha falta de memória espacial e a limitada coordenação com a bengala. Como eu não aprendi a andar no Centro de Treinamento paralímpico depois de quatro meses? Um desses gênios que pratica esportes ali até garante ter decorado todos os caminhos da estação Santa Cruz do Metrô, com suas muitas e muitas escadas rolantes, e faz troça da dependência que tenho do GPS para não me perder na rua.

Na minha vida mais mansa, todos se impressionam por eu levar anotações na hora de apresentar um programa de rádio e, mesmo que gaghejando, escute elas pelo fone de ouvido ao mesmo tempo em que falo tentando passar as informações principais para o público. Mas as pessoas realmente geniais decoram com facilidade tudo o que será dito e pensam, "é um rapaz esforçado".

Entre os bonzinhos, acham incrível eu conseguir ler o bê-a-bá com a ponta dos dedos. Não aguentam ver uma placa em braille na porta do banheiro e pedem para que eu coloque o dedo ali para balbuciar "sanitário masculino", o que pode levar uns dez segundos. Para quem sabe de verdade, não passei muito do semianalfabraillismo.

Entre o pessoal da vida café com leite, se eu decoro onde fica o botão para esquentar a comida no microondas por 30 segundos eu estou pronto para o Master Chef. Mas a galera do terror sabe a hora em que a torta terminou de assar no forno só pelo cheiro.

Aliás, comecei a perceber que tinha uma turma da pesada entre os que não enxergam quando uma amiga que caminhava comigo encontrou uma farmácia antes de mim, pelo olfato.

Do lado da fronteira dos que enxergam, as habilidades que desenvolvi e as ferramentas que aprendi a usar conforme minha deficiência visual avançou parecem extraordinárias. Isso porque elas ainda são meio desconhecidas desse lado e cada novidade que trago é uma surpresa.

Quando dou um pulo para o outro lado e me reúno com pessoas com deficiência visual bem estimuladas, desenvolvidas e autônomas, vejo que ainda sou um iniciante em muita coisa. E aprendo cada vez mais a navegar e me deliciar por esse universo de sons, tato, cheiros e sabores.

Sou nativo da terra dos que enxergam. Nunca estudei em escola especial, fiz pouquíssima reabilitação em instituições especializadas e, na maior parte do tempo, não vejo muita razão para que pessoas com deficiência fiquem em seus guetos e haja grupos formados só por nós. Mas, quando dei por mim, as oportunidades e o acaso vieram recentemente e passei a trabalhar, fazer cursos, esportes e amizades com quem está mais habituado a passar a maior parte do tempo entre cegos.

Posso dizer que encontrei nessas turmas muito mais talento do que se imagina. Gente que navega muito bem pelo jornalismo, esporte, tecnologia, edição de áudio, música e psicologia, entre outras.

Que esse intercâmbio que tenho a sorte de fazer todos os dias possa ser vivido por mais pessoas. Verdade que podem te achar meio esquisito por precisar dos olhos para escovar os dentes, cortar as unhas ou passar manteiga no pão, mas a convivência será rica exatamente por causa dessas diferenças.

Espero que sejam receptivos a essas suas limitações e que sua inclusão aconteça de fato. Mais ainda, que essas fronteiras sejam apagadas de vez e possamos todos viver juntos de fato.

Homem com bengala se prepara para atravessar a rua - Sara Krulwich - 26.jun.2012/The New York Times

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