No princípio era o trollface. Criada em 2008 na plataforma 4Chan, essa ilustração caricatural de um rosto com ares de malícia foi um dos primeiros memes a se popularizar na web. De lá para cá, a cultura de criação e compartilhamento de memes passou a permear a vida em rede e tornou-se parte integrante de sua dinâmica.
A cultura do meme é particularmente forte na internet brasileira. Não é incomum encontrar nas redes postagens sobre essa "instituição" nacional sólida e que segue funcionando.
Se há uma década criar e compartilhar memes era apenas um hobby divertido, atualmente, para alguns, é uma carreira. Os memes brasileiros estão se profissionalizando e seus criadores também.
Gabriel Felix, 23, fundou a página South America Memes aos 16 anos. "Nessa época os memes do Brasil não tinham uma cara própria. Muito do que a gente fazia era tradução do que os gringos faziam. Eu e amigos criamos a página e começamos a colocar a cultura brasileira nos memes", explica.
A SAM tem mais de 3,8 milhões de seguidores no Instagram e mais de 2,5 milhões de inscritos no YouTube. E começou como uma atividade descontraída para Felix, que hoje trabalha como criador de conteúdo digital. Ele está por trás de memes como o funk "olha o gás".
Quando morava na Penha, na zona norte do Rio, Felix lembra a sensação de ouvir os caminhões de gás que passavam na rua tocando o remix criado pela SAM. "Percebi a dimensão dessa coisa totalmente despretensiosa, mas que traz nossa cultura. A gente deu uma nova cara para algo cotidiano, que começou a ser visto de outra forma pela população em volta, muitos sem nem ter visto o meme original."
"Eu pensei então como eu poderia fazer disso o meu trabalho", conta. "Em 2017, a publicidade ainda nem estava atenta a esse meio. A gente se perguntava como comercializar, a gente procurava agências, tentava explicar o alcance para as marcas, mas elas não se interessavam."
Isso mudou quando Felix encontrou a Flocks, empresa especializada na gestão de canais digitais que investiu no trabalho da SAM, o que Felix afirma ter sido essencial para ele se profissionalizar.
"Nós enxergamos ali um produto de grande audiência", explica o publicitário Claudio Prado da Flocks, "mas que não tinha ainda uma cara comercial". O publicitário se apaixonou pelo universo ao conhecer os criadores da SAM.
Foi para reunir criadores de grandes páginas brasileiras —como Saquinho de Lixo, Melted Videos, O Brasil Que Deu Certo e a própria South America Memes —que a Meta, dona do Facebook e do Instagram, realizou o Global Meme Con 2022, um dia com palestras e apresentações dedicadas à criação profissional de memes.
"Os memes refletem o zeitgeist, o espírito do tempo, mas também o moldam", afirma Matheus Cardoso, gerente de parcerias de creators da Meta. Como exemplo, Matheus destaca o meme da Pifaizer, de Esse Menino, cuja sátira crítica baseada na CPI da Covid teve grande impacto. "Tenho certeza que quando a gente falar de 2021, lá no futuro, vamos lembrar do Esse Menino."
Para ele, que trabalha de perto com os principais criadores de conteúdo das plataformas da Meta, o diferencial dos memes brasileiros está na velocidade com que são produzidos e seu engajamento político e social.
Fundada em 2014, a Melted Videos surgiu quando Felipe Misale, 35, começou a sentir que precisava de uma mudança em sua vida profissional. Misale trabalhava na Rádio Cultura e conta que, entre uma música clássica e outra, começou a produzir vídeos e criou o canal no YouTube.
Ele se juntou a Murillo Prestes, 28, e eles começaram a produzir conteúdo para o canal e, depois, para o Instagram. Hoje, a equipe da Melted trabalha integralmente na produção de conteúdo. Além da preocupação estética, um dos diferenciais da Melted, afirmam, é a consistência.
Apesar da impressão de ser um trabalho espontâneo, é apenas isso —impressão. Na Melted, destacam João Miguel Alves de Moura e Silva, 33, e Thiago Almeida Fialho, 28, há muito método e muita organização. "O principal serviço que a gente presta é a conversa criativa com a comunidade, no dia a dia", afirmam. Para eles, mais importante que o olhar empresarial, é a atenção ao diálogo com questões relevantes para a sociedade, como o combate ao machismo.
A Saquinho de Lixo, que hoje tem 1,5 milhões de seguidores, começou em 2017 como um experimento "de um grupo de whatsapp caótico", explica Sofia de Carvalho, uma das criadoras da página cujo nome foi inspirado por uma campanha da prefeitura do Recife para manter as praias limpas, "botando o lixo no saquinho".
O humor da Saquinho é diversificado —mistura a autodepreciação, o shitpost (postagens de má qualidade irônica), "humor tiozão", e a cultura pop.
Com esse mix, a página conquistou um público de idade abrangente, de adolescentes a adultos. E tem particular adesão entre a comunidade LGBTQIA+, segundo os administradores. E, apesar de todos serem nordestinos, a página tem um público maior no Sudeste.
"Nós estamos caminhando para a profissionalização, a gente se encontrou no Saquinho, mas ainda não podemos depender totalmente da página", explicam os administradores, que dedicam boa parte de seus dias à criação e curadoria de memes. "A gente nunca sai de casa", riem.
"Meme é engraçado, mas é coisa séria", ressalta Matheus Cardoso. "É preciso educar esse mercado, passar o tino comercial", diz. Segundo ele, a Meta tem trabalhado para aprimorar esse ecossistema e transformar a criação de memes em um ganha-pão para os criadores de grandes páginas.
Sobre o futuro dos memes, Matheus arrisca uma previsão para o setor: talvez no metaverso o meme encontre uma nova transformação, como foi aquela dos rabiscos de rostos para a edição de vídeos.
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