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'Cancelamento' não transforma a realidade nem atinge origem dos problemas, dizem especialistas

Fenômeno das redes sociais falharia ao individualizar questões coletivas

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São Paulo

"O 'cancelamento' só existe mesmo para corpos e vivências 'cancelados' também offline, na realidade", afirma Daniela Arrais, fundadora da Contente, plataforma de conscientização para o uso mais saudável das redes sociais.

Ilustração de uma pessoa de costas segurando um smartphone, do qual sai a imagem de uma cabeça com um braço, que aponta o dedo para a pessoa que está segurando o celular, acompanhada de letras em vermelho "FÚRIA JULGADORA". Há uma cobra indo na direção da pessoa e um gato assustado do lado dela.
Marta Mello/Folhapress

Para ela, o chamado 'cancelamento', fenômeno contínuo nas redes, é muitas vezes usado por pessoas públicas como estratégia para ganhar mais visibilidade, enquanto outras, geralmente anônimas, sofrem, de fato e fora da internet, as consequências de atitudes e falas julgadas como condenáveis pelo tribunal das redes. Ou ainda, já vivenciam, de partida, a exclusão social.

Para a especialista, pessoas negras, LGBTs e mulheres estão mais suscetíveis a terem suas vidas reais, e não apenas virtuais, 'canceladas'. Difícil discordar ao olhar os dados de violência contra estes grupos no Brasil.

O caso de Will Smith, por exemplo, é "sintomático", segundo Arrais. Enquanto muitos homens brancos de Hollywood já foram acusados de assédio ou até atitudes mais graves (como Johnny Depp, Woody Allen e Roman Polanski), Smith foi banido do Oscar após dar um tapa em Chris Rock durante a cerimônia, quando tornou-se alvo de críticas implacáveis nas redes, tanto de famosos quanto do público em geral.

"Se ele fosse branco", especula Arrais, "provavelmente estaria lançando um filme sobre como a raiva é detonadora de mudanças. O 'cancelamento' só abate realmente pessoas 'não-hegemônicas'. Enquanto pessoas brancas, por exemplo, capitalizam o 'cancelamento'", conclui.

Assim, não é possível falar que alguém foi 'cancelado' quando, após o 'cancelamento', lança peça, livro, série, aumenta seu número de seguidores e tem espaço garantido na mídia, mantendo a mesma visibilidade que tinha antes ou até mesmo a ampliando.

"Em sua origem, o 'cancelamento', o julgamento em massa", explica Juliana Cunha, diretora da SaferNet, "era uma estratégia de grupos desempoderados —especialmente para denunciar situações violentas envolvendo pessoas poderosas. Era uma forma de exigir uma resposta da sociedade", diz, lembrando o movimento #MeToo e o caso de João de Deus.

Para ela, o cancelamento já foi uma maneira de colocar pessoas influentes sob escrutínio público após atitudes, para além de reprováveis, também violentas, e encorajar outras vítimas a se manifestarem. "Mas isso se banalizou. E qualquer pessoa que tem um ato reprovável acaba sofrendo.", conclui.

"O que é diferente", ressalta, "de pessoas que já tem visibilidade e vida pública sendo cobradas por suas falas". Assim, não se pode comparar o caso de Catharina Lima, 40, 'cancelada' nas redes após postar fotos do sorvete da Baccio di Latte, e o caso de Monark, cobrado após fala a favor do nazismo em seu podcast, um dos mais populares do Brasil.

De um lado, uma pessoa anônima é alvo de ataques em série e se torna o centro de um debate que vai muito além dela própria (de poder aquisitivo, no caso de Catharina). Já no caso de Monark, trata-se de alguém com vida pública, em um espaço público, lidando com as consequências de seu posicionamento. E, mesmo assim, para algumas pessoas a cobrança é breve e 'cair para cima' costuma ser o efeito.

Para além disso, tanto Daniela quanto Juliana sublinham: o 'cancelamento' não transforma a realidade nem ataca a origem real dos problemas, pois personaliza em um único indivíduo questões que são da sociedade inteira, como o racismo, o machismo e a desigualdade econômica.

É para discutir questões como essa e outros temas em torno do uso saúdavel das redes sociais que a Contente, junto à Safernet e à Meta, inauguraram a iniciativa A Internet Que A Gente Faz. O projeto questiona: a internet que estamos construindo é ponte ou muro para o diálogo?

Ao longo de seis meses, as plataformas envolvidas promovem conteúdo que discute como podemos atingir o bem-estar nas redes, evitar engajamento com aquilo que nos faz mal e resistir aos impulsos de 'manada', disparadores de fenômenos como o cancelamento. Ou seja, como fazer um uso mais produtivo e construtivo das redes sociais.

"A oferta de espaços para a palavra é de extrema importância na sociedade digital, na qual a escuta do outro torna-se cada vez mais difícil, e o ambiente virtual é repleto de monólogos coletivos, ou espaços de ecos", afirma Nádia Laguardia, pós-doutora em teoria psicanalítica e professora da UFMG. "É cada vez mais importante propor reflexões sobre os usos das tecnologias digitais, analisando as formas de mal-estar na cultura atual, mas também descobrindo os usos subversivos e inventivos que cada um faz do espaço virtual."

É essencial democratizar o debate sobre o funcionamento das redes sociais e "suas implicações políticas, sociais e subjetivas". "Num mundo mediado pela tela e marcado pelo imperativo de transparência, o que se dá é a ilusão de que tudo pode ser visto, sem sombras. Então, é preciso inventar para fazer sombra, dar lugar à opacidade, para que o singular tenha lugar.", conclui.

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